Eram onze e pouquinho da noite e eu me dei conta de que as meias que eu estava vestindo não iam dar conta da madrugada rasgando o Uruguai em meio à chuva fina. Abri a mochila atrás do par de meias grossas de trilha que sempre mantenho entre minhas coisas nos meses de maio a novembro e ali mesmo nos bancos de metal, tirei os tênis e as calcei. Viajar para mim, por causa do meu trabalho, não é um ato particularmente solene e o inverno no extremo sul não termina necessariamente em setembro. As meias grossas extra e as leggings térmicas são sine qua non.
Estava, sobretudo, linguisticamente confusa. Normalmente, entre o fim da minha aula e a hora do ônibus que tomo todas as madrugadas para Porto Alegre me sento num canto com os fones de ouvidos e fico lendo ou então assistindo alguma coisa no YouTube. Falo o mínimo necessário com as pessoas que se encontram na recepção do hotel em que me hospedo porque já falei o suficiente por horas. No entanto, faz duas semanas que entro e saio dali e vejo uma gringa — na acepção original do termo — sentada no sofá tomando um líquido laranja que não sei bem o que é e assistindo vídeos no celular. Quando fala, é no inglês que me acostumei a escutar entre os anos 90 e o início da década passada.
“O que essa gringa tá fazendo aqui?”, pensei na primeira noite, sem atrever-me a dirigir palavra porque sei como essas mulheres são, já fui uma delas. E ela já estava gastando os ouvidos do menino da recepção. Pensei que era dessas que viajam de moto.
Há muita gente que viaja de moto e que para na fronteira para dormir.
Na semana passada, no entanto, não resisti. E assim nomá, como se fosse uma aparição de algumas das minhas professoras numa escola de Albany, na Califórnia, ou Cynthia, na casa de quem morei em Connecticut, ela respondeu meu tímido “where do you come from?”. Me contou que era de Nova York, que viveu a vida toda nos arredores de Los Angeles, que foi casada com um salvadorenho que já faleceu, que teve que ir morar no Texas “for tax reasons”. Ano passado, foi para o Uruguai e passou uma noite em Jaguarão. Decidiu, esse ano, ir morar no Brasil, como se Jaguarão o fosse mais do que apenas no papel.
“Cansei de Los Angeles, quero silêncio.”
Não fala português, nem espanhol, apesar do marido e dos enteados salvadorenhos. Ou seja, o silêncio, a não ser quando ela é interpelada em sua língua, impera, atravessado pelo seu uso insolente do inglês num espaço dominado por um português e por um castelhano que nem eu entendo às vezes, de tão mascados, escondidos como as intenções de quem cruza a fronteira ilegalmente.
Conversamos sobre relações amorosas em que um fala uma segunda língua e o outro sua língua nativa e eu resvalava, no meio da minha segunda língua, ao que supostamente é minha terceira, “claro,” “obvio”, “bueno”, “y sí”. Estou em meses em que um dia disse espontaneamente que algo custava “diez lucas” e arregalei os olhos assim que a expressão saiu, acompanhada de uma gargalhada de meu namorado.
“Não tenho muita paciência para falar português com ele,” expliquei rindo, sabendo o que isso significa.
Minha língua e não a nossa, que é esse meio de caminho.
E a verdade é que nesse último ano, minhas construções frasais são todas misturadas. Digo medio día y quince (“querés decir doce y cuarto?”) ou então me causou graça quando ela disse que. Me lembrei de quando, nos anos 90, eu dizia que não adiantava as pessoas “pretenderem que nada estava acontecendo” ou que eu “estava suposta a fazer” algo. E daí sou acossada pelo fato de que sou neta de uma mulher que me dizia para “fazer um soninho” (fare un sonetto) e de outra que jamais dizia “tudo bom?” e sim “qué tal?”.
“Te gusta Spinetta?”, me perguntou o menino argentino da imigração no terminal do Buquebus, ao ver meu moletom, em meio a gente que estava evidentemente a passeio, em descanso e com aquele ar perdido dos turistas.
Não semi-zumbi entre uma semana de trabalho e um congresso, tresnoitada, fazendo as coisas no automático.
“Sí,” eu sorri.
“Hasta cuándo vas a ficar na Argentina?”
E quando respondi rápido hastaelveintinunoporahí, ele deixou de lado o portunhol gentil dos aduaneiros.
I am going to need a home, me disse Donna, no hotel, na quinta de noite, em meio a impropérios às condições dos alugueis na fronteira (fiador, contrato mínimo de dois anos, a falta de pia da cozinha nos apartamentos). Mesmo quem erra por aí precisa de um lar. Esse final de semana fomos ver Atahualpa Yupanqui, un trashumante, dirigido por Federico Randazzo Abad, no qual Hector Chavero repete a frase escutada de um “cacique velho”, “el hombre es tierra que anda” em várias ocasiões e sorri pensando nela e em tantos outros inquietos por aí, que talvez tatuaria essa expressão. Não sabia, mas muitas das canções de Yupanqui mais famosas tiveram a melodia composta por sua companheira, a pianista franco-canadense Antonietta Paule Pepin-Fitzpatrick, inclusive Chacarera de las piedras. Nenette assinava as composições como Pablo del Cerro e no documentário há quem diga que muito disso que tomamos como folclore argentino, por causa dela, tem marcas até “beethovenianas”.
Mesmo aquilo que julgamos mais arrinconados, no final das contas, saiu de algum outro lugar.
hay gente que es de un lugar,
no es mi caso
yo estoy aqui
de paso
Impossível ler o teu texto e não pensar em algumas passagens da minha própria história. (Também lembrei do cartaz de Terra Estrangeira, da Daniela Thomas e do Walter Sales, lembrança de um filme que fez sentido pra mim.) Brasileiro de nascimento, levado pro Uruguai com um ano e depois ao Peru, só voltei ao Brasil com 10. Alfabetizado em espanhol e francês, o português foi aprendido em casa com os pais, apenas falado. Resultado: na primeira escola brasileira eu escrevia em portunhol e falava com razoável sotaque baiano-sergipano, sendo que a parte em português era meio castiça, de adulto, já que nunca tinha conversado com brasileiros da minha idade. Os coleguinhas me sacaneavam antes que eu aprendesse o que significava sacanear, diziam que eu lia o dicionário aos fins de semana porque usava umas palavras de velho. Diria que não foi das experiências mais agradáveis sofrer aquele tipo de bullying antes da palavra entrar no vocabulário dos dias atuais, mas deu pra sobreviver. Com cicatrizes, claro, como soi* (êpa!) acontecer, mas sobreviver.
* "Suele" é bem mais bonito e não faz barulho, né?