“O que tu largou aí?”
“A chave da mala”
“Lembra de quando tu perdeu a chave da mala e teve que arrebentar o cadeado?”
“Nossa, sim. Com um alicate imenso. Onde eu tava?”
“Não lembro. Na Argentina?”
“No Chile. Acho que no Chile. Lembro que me putearam.”
“Não sei. Só lembro que tu perdeu a chave da mala.”
(...)
Disco correndo o número porque é mais fácil do que procurar nos contatos do telefone. Ela ainda está no carro, então o som é horrível. Já eu não posso voltar. Tecnicamente já saí do país e não da forma como costumo sair, informalmente, todas as semanas, quando faço um dos meus treinos de corrida atravessando uma ponte rumo ao Uruguai.
“Tu não vai acreditar. Não sei onde coloquei a chave da mala.”
“Tu colocou no bolso da frente da mochila.”
Eu sabia que ela ia saber, porque está acostumada a prestar mais atenção em mim do que eu mesma, haja vista que me pôs no mundo. Enfio a mão no fundo do bolso, que tem um fecho pela lateral e a profundidade da bolsa da Mary Poppins. Ali, entre os fones de ouvido, duas canetas e uns quantos prendedores de cabelo, apalpo algo que parecem chaves.
“Achei. Tava ocupada em fazer piada e nem prestei atenção.”
As pessoas do meu entorno passaram as duas últimas semanas me perguntando se eu já estava “de malas prontas”, quando na verdade tive ainda duas malas por fazer nesse ínterim que não essas de que eles falavam. E é só uma mala e essa mochila, que está ao meu lado agora, meio aberta enquanto eu digito esperando. Aprendi, nos últimos anos, a ler e a escrever em tudo que é lugar, então esse canto da sala de embarque relativamente vazio está bom. Escrevo em padarias, cafés de rodoviárias, salas de embarque de aeroporto, saguões de hostel e hotéis. As mesas da Churrascaria do Magro, em Jaguarão, cobertas com um vidro que prende junto à toalha propagandas dos pontos turísticos da cidade — que não é feita só de Free Shops —, me renderam muitos parágrafos desde que voltei a frequentá-las em 2022.
Estou fazendo uma oficina literária e quando falaram de processo criativo, pensei que para o meu basta estar com o google docs aberto em algum lugar insólito, como uma churrascaria na fronteira, lá por onze da noite, enquanto o assador exclama com cada lance do jogo de futebol passando na tv e um dos gerentes separa o feijão do dia seguinte na mesa ao lado.
Na terça passada comentei na aula de yoga que seria minha última prática antes de ficar fora esses dois meses. Tive que explicar que não iria ao estúdio na quinta porque meus horários mudaram e ficaria fora outros dias da semana, diferentes daqueles em que vinha ficando. Alguém perguntou onde dou aula e minha instrutora disse algo da sorte de “não sei de onde ela tira energia para ir e vir assim”, diante da surpresa, de pensarem que são seis horas de ônibus. Nenhuma viagem de menos de seis horas é viagem para mim. Não mais.
Naquele dia, a yoga me salvou. Porque tinha passado a segunda-feira tão triste que me sentia aplastada ao rodapé e terça tão ansiosa que queria desesperadamente o ônibus e a estrada e minha mala de ombro. Queria a rodoviária de Pelotas e uma mesa numa das lanchonete onde eu pudesse escrever, tuitar, conversar com meus amigos. Sei que poucos entendem, a começar por meu próprio pai, ele que viveu desse jeito por uns anos antes de eu nascer, percorrendo a mesma estrada com um Fiat, e minha mãe indo e vindo encontrá-lo em ônibus da mesma empresa pela qual viajo hoje. Quando passei no concurso, há quase oito anos, ele me perguntou se eu ia me mudar. Respondi que achava que não.
“Tu vai viver na estrada?”, lamentou.
Mas foi ele que me ensinou que elas eram excelentes lugares para se estar, entre um paradouro e outro, a paisagem de campo sem fim passando ao lado, muitas garças e carcarás ou gaviões, e Mahler ou Nicki Nicole nos fones de ouvido, a depender do meu humor. Isso, no entanto, tem seu custo. Porque na noite de quarta para quinta, eu viajei não apenas no espaço, mas no tempo, e a pessoa com quem eu estava também mudava, era ele e era outro, ambos conhecidos. Abria o whatsapp para enviar uma mensagem, perguntar “onde tu tá?” e não apenas não sabia que nome procurar, como também começavam a aparecer propagandas, como quando estamos olhando o Instagram e não entendemos por que raios o amigo cujo perfil estamos olhando subitamente quer nos vender um curso de como investir em criptomoedas. Terminei o sonho em 1920 ou 40, entrando em um estádio de futebol pelo que parecia ser a cabine de imprensa, e um jornalista, de suspensórios e fumando, me viu perdida e me ofereceu uma carona em um carro de outro século.
Dirigiu por uma avenida enorme e me dei conta de que não estava mais onde estava e sim para onde vou.
Pedi para descer em um café Martínez, finalmente algo familiar.
Quando acordei, precisei me enfiar embaixo do chuveiro do quarto do hotel onde moro fora da minha casa — como se fosse um poeta velho — e deixar a água me surrar até eu voltar para as coordenadas e o plano temporal em que me encontrava. É quinta-feira, tu tá em Jaguarão, são três da manhã.
De tarde, quando contei meu sonho para uma colega e amiga, companheira literalmente de estrada, ela me disse “Tu vê, mesmo com tudo isso, tu chegou”.
Foi meu pai que me deu de presente o livro que foi meu Harry Potter: A casa dos espíritos, de Isabel Allende. Eu tinha uns doze anos e devorei e redevorei aquele romance várias vezes. Entre muitas coisas assustadoramente familiares, houve um estranhamento. Uma mulher chamada Tránsito, que age como um deus ex-machina no desfecho da trama, ou pelo menos é o que lembro. Fiquei fascinada por essa ideia, por esse nome, tanto que enfiei aquele livro em malas e mochilas — além de caixas de mudança — e o levava comigo para todos os lados, para a praia a uma hora e meia de distância de Porto Alegre e num avião jumbo da Varig uns meses depois. Queria saber como era uma mulher com esse nome que significava esse meio de lugar em que então passava e continuo passando muitas horas dos meus dias.
Foi na mesma época em que li As casa dos espíritos que meus dentes criaram espaço para guardar outro idioma.
Na quinta de noite, depois de viajar no tempo dormindo e dar aula acordada, cheguei na rodoviária de Jaguarão e vi duas pessoas que não se entendiam. Um sujeito enfiava um celular do qual saía um português educado porém incoerente para o funcionário do guichê na voz do tradutor do Google. Ouvi ele tentando repetir o que queria dizer ao celular em inglês e, ainda segurando a mala de ombro, a mochila, tudo, me aproximei e perguntei se precisavam de ajuda. Ambos me olharam com alívio e rapidamente desfiz todos os nós, entendi que o mochileiro queria deixar as malas na rodoviária para ir até o posto da polícia federal fazer o controle de fronteira antes de passar para o Uruguai. Os terminais e as rotas de ônibus internos de Brasil e Uruguai estão de costas um para o outro e aqueles que transitam usando-os a despeito de sua nacionalidade, se não querem estar ilegais no país vizinho, precisam fazer tudo por si.
Uma coisa turva e estranha que jamais entendi muito bem.
“Where are you from?”, perguntei ao anglófono perdido, um sujeito pálido, loiro, com todas aquelas roupas de quem viaja, aquelas cheias de bolsos. Jamais usei essas coisas.
“Poland,” ele disse, “but I’ve been living in the UK for twenty years, so I don’t really know how to answer that anymore.”
Apenas sorri, pela beleza da resposta — curta mas que dizia tanto —, e ele saiu me agradecendo aos gritos, acompanhando o motorista que o havia trazido de Porto Alegre, e que me explicou que poderia dar-lhe uma carona até a PF sem que ele precisasse deixar as malas ali.
“Sure,” berrei — a versão gringa de “capaz”, “have a safe a trip.”
“Me salvasse,” disse o funcionário da rodoviária, um novo que ainda não conheço muito bem, enquanto imprimia minha passagem.
Trânsitos.
Entre sexta de manhã e hoje me aquietei um pouco. Hoje, sábado, minha mãe passou fugazmente por meu prédio e me deixou a mala que estou usando.
“Precisa de cadeado. Ela não tem código.”
“Tenho um com chave.”
Sinto um incômodo nervoso nas pernas, como quando estava crescendo e meus pés doíam de madrugada, fazendo com que eu precisasse esticá-los, mexê-los, qualquer coisa. Depois aprendi que isso se chama “síndrome das pernas inquietas”. Por dois meses não vou viajar mais, mas para isso preciso viajar antes.
Abro meu email e vejo ali o trânsito da semana, aquele outro, cujos sinais dei também para levar a sério, nem que seja como algo para pensar quando não se há o que pensar:
“Os pássaros voam a céu aberto. Essa é você agora.”
Y sí, penso. O céu, diz o piloto mais tarde, está “despejado”.
gosto muito de ler o que você escreve, Renata. me emociona, me comove! boas viagens por aí
Uma viagem este texto! Valeu! Um pouco da minha carência de viajar nos últimos anos matei lendo esta linda reflexão!