Un Rolex por un Casio
É comum usarmos rupturas como forma de marcarmos o tempo e daí passarmos a associar um dia específico do calendário a elas, fixando-as na memória. Alguns eventos têm um poder disruptivo tal que sentimos a necessidade de nomear períodos a partir deles não só porque nossas vidas pessoais são transformadas, mas também como forma de elaborar quaisquer sentimentos que tenhamos em relação ao que se passou. Nos últimos anos, parecemos viver de contar e recontar o tempo a partir de acontecimentos específicos cada vez mais próximos, tendo de trocar de relógio, acertar ponteiros a novos fusos, a cada um ou dois anos - o tempo cada vez mais acelerado. No fim talvez também fosse disso que Shakira estava falando. Ser trocada por um novo tempo, um amor mais novo, que em certo senso comum masculino quer dizer melhor, mas nem sempre.
Em suas teses sobre o conceito de história, Walter Benjamin menciona o explodir do continuum do tempo associado a revoluções, manifestado na adoção de um novo calendário, como foi o caso da Revolução Francesa. Adotado em 1793 durante o período em que os jacobinos dominavam a Convenção Nacional, os franceses zeraram o tempo, passando a contá-lo a partir 1789 e determinando que dias, semanas e meses teriam outros nomes, relacionados com a natureza. É de onde saem termos que sobrevivem ainda hoje, associados ao passado francês: brumário, germinal e termidor.
As horas também passaram a ser contadas de outra maneira, por sistema decimal, o que fez com que novos relógios tivessem de ser fabricados. De Rolex a Casios, tous les citoyens, diriam alguns. No romance Os deuses têm sede (1912), Anatole France — ele próprio alguém que projetava futuros e alternativas mais justas de sociedade — descreve a mãe do protagonista tendo de conferir o calendário revolucionário com o antigo ao qual estava familiarizada, para situar-se no tempo.
A chamada Grande Revolução não se limitou apenas aos últimos respiros do século XVIII, contudo. Benjamin vai além: afirma que na Revolução de Julho — que em 1830 interrompeu o processo de restauração com a instituição de Luís Felipe de Orleans como monarca francês — os revolucionários em uma batalha específica haviam dado tiros em relógios com o propósito de deter o tempo naquele novo instante que estavam construindo e que também não durou muito.
Nos livros escolares brasileiros, nosso período contemporâneo foi batizado de Nova República, em contraste às práticas pouco democráticas que seguiram 1890, aos trancos e barrancos, em meio às primeiras décadas do século XX e aos períodos ditatoriais do Estado Novo e do regime civil-militar. Para quem nasceu, como eu, durante a redemocratização, parecia que nunca sairíamos dessa Nova República, assim como em tese nunca saímos da chamada Idade Contemporânea, marcada pela tomada da Bastilha, aquela mesma de 1789. Cronologias e calendários são formas com que organizamos o tempo não apenas para conseguir criar futuro e apreender o que aconteceu no passado, mas também para dar sentido político aos acontecimentos. Pelo mesmo motivo que hoje estamos horrorizados com as fotos de Ianomâmis emaciados, a história do Brasil, salvo algumas concessões mais recentes — tornadas obrigatórias por lei — começa em 1500.
Essa sensação de que havíamos chegado a um período de estabilidade democrática era mais ou menos como aquele fim da história projetado frente à constatação de que não haveria projetos políticos mais eficientes do que a democracia liberal, após o final da Guerra Fria. O encolhimento das possibilidades alternativas ao capitalismo jogaram esses projetos para o passado, como se lutar contra o sistema por meio das bandeiras do socialismo e do comunismo fosse manter-se casado com uma “coroa de 45 anos”, tornando comum entre defensores do status quo o “nem de direita, nem de esquerda”.
Ao mesmo tempo, a degradação das subjetividades pelo neoliberalismo fez com que ele próprio erodisse seu futuro, em que pese alguns momentos de resistência; pelo menos por alguns anos em Porto Alegre outro mundo parecia possível, que eu lembre. Depois de 2016, a democracia liberal e a social democracia parecem ser uns botes aos quais todos nós estamos agarrados, às vezes cuspindo, com água pelo queixo, alguma coisa sobre humanizar o capitalismo e tornar o consumo sustentável.
Para quem é historiador ou militante de esquerda — ou as duas coisas ao mesmo tempo — os dias que estamos vivendo se parecem muito com adentrar aquelas atrações circenses de espelhos que distorcem os reflexos, já que hoje parecemos contar com o apoio dos Estados Unidos para evitar um golpe militar. Na posse do dia 1 deste mês, vimos a elaboração de uma narrativa nacional que recuperava muitas das intenções por trás da Constituição de 1988, de um Brasil democrático e plural, buscando alargar o espaço na história para mais tempos e agentes. Uma semana mais tarde tivemos a resposta de quem não se enxerga nesse projeto de nação, não se enxerga no Brasil construído a partir do final dos anos 1980 e talvez até mesmo antes, haja vista os discursos conservadores que circulam em sites de extrema direita a respeito da arte brasileira. Aquelas pessoas dispuseram-se a destruir tudo o que estava ali, inclusive um relógio do século XVII trazido ao Brasil por D. João VI, aquele mesmo que veio fugindo de Napoleão Bonaparte, o homem que esculhambou com o mapa da Europa entre 1799 e 1815 mas devolveu o calendário cristão e o sistema horário de doze horas aos franceses depois da Revolução.
A destruição daquele relógio me comoveu menos do que o conhecimento de que o que houve no último dia 8 não foi uma quebradeira aleatória, mas sim um princípio de golpe de estado. Relógios não possuem valor em si mesmos — Rolex e Casio que o digam —, e o que exatamente fazia um oriundo do Antigo Regime no palácio presidencial de uma cidade modernista projetada no planalto central é de dar o que pensar. A pessoa atirando aquele objeto ao chão foi filmada de todos os ângulos, vestindo uma camiseta do ex-presidente que deixou o Palácio da Alvorada igualmente estropiado para seu sucessor. Os jornalistas na televisão se perguntavam que valor alguém que defendia a tortura, a ditadura e a morte daria para um relógio que havia saído da corte de Luis XIV. Para além do anacronismo, isso deixa evidente que as ideias de democracia e direitos humanos estão associadas à de patrimônio e cultura, não importando muito bem do que, e muitas vezes apenas defendidas da boca para fora. A sensação que tive é que era uma indignação por inércia.
Para além do atentado contra a Constituição e o Estado Democrático de Direito tal como estabelecido depois de sairmos, rastejando, de vinte anos de barbárie, vejo o que ocorreu no domingo dia 8 como sendo o acúmulo de certo discurso a respeito da política e da coisa pública feito por anos pela mesma imprensa e agentes públicos que hoje choram a destruição de um quadro de Di Cavalcanti. Não é apenas o descaso com a educação, com as humanidades e com a história que faz com que o sujeito que esteja lá atirando casualmente um relógio no chão possivelmente sequer saiba o que está destruindo. Trata-se também da evidência de que naturalizamos uma noção de patrimônio que pouco comunica àqueles em nome de quem ele está salvaguardado, pois muitas vezes tratado como desperdício, pretexto para vilipendiar manifestantes, e mais, um sintoma de um regime de tempo que ao mesmo tempo que destrói o que é antigo em nome do novo e atual, quando o preserva, o faz muitas vezes de forma impensada. Meus alunos, mais rápidos do que muita gente grande por aí, apontaram a ironia de estarmos chocados com as cenas daquele dia quando há pouco tempo estávamos exultantes diante da remoção e destruição de estátuas de traficantes de escravizados e bandeirantes, que também estavam sendo defendidas sob as égides do patrimônio e da história por alguns.
“Estamos aqui horrorizados que destruíram o que, no final das contas, são símbolos da branquitude,” me disse uma aluna na semana passada, olhando para o chão da sala de aula com os olhos um pouco vazios.
“Destruídos por quem está defendendo a branquitude, sim,” respondi, tentando comunicar a mesma medida de confusão.
O Brasil nos atira o tempo todo para outros tempos que não aquele dos livros de história e que se reflete em nosso vocabulário cotidiano e político com termos como “avanço”, “progresso”, “retrocesso”, “atraso” e “desenvolvimento”. Todas essas coisas dependem muito da subjetividade de quem as aplica no tempo e muitas vezes podem pegar alguém na contramão. Essas distorções temporais estão presentes nas nossas relações etnicorraciais, quando gente de direita diz que esquerdistas e indígenas não podem ter celulares, nas de gênero (“yo valgo por dos de veintidós”) e de trabalho (basta pensar que a rotina média de um trabalhador é, a grosso modo, produto da Revolução Industrial).
Nossos relógios são incrustados de desigualdades, com mecanismos que volta e meia travam, aceleram, parecem andar para trás, e nem sempre estão sincronizados.
É, sim, uma tragédia o que aconteceu com o relógio feito por Balthazar Martinot, mas não porque ele tem um valor intrínseco por ser do século XVII ou por ter sido trazido por um monarca naquele marco temporal que consideramos o princípio do Brasil independente e que dá nome a uns livros por aí. Se ele representa algo sobre o Brasil, é que um dia aportou aqui uma corte europeia uns anos depois de o termo “vandalismo” ter sido cunhado por conta da destruição de palácios da monarquia absolutista francesa. A partir da vinda da corte, o país teria se tornado unificado e independente, sim, mas sobretudo enquanto um projeto contra-revolucionário, anti-republicano, principalmente depois da derrota de Napoleão. E, no entanto, tampouco vejo como ironia que muitos dos apoiadores do ex-presidente sejam monarquistas e tenham destruído esse objeto em particular: o que eles estavam quebrando ali era a posse do novo governo, as pessoas a quem ele representa — Ianomâmis emaciados, moradores de favela, subjetividades outras que não as deles — presentes naquela narrativa nacional criada no dia primeiro.
Tentaram destruir um passado que não queriam e um futuro que não querem ver se realizar.

