Queria encontrar uma forma de descobrir quantas palavras escrevi entre o final de 2020 e agora. Entre abrir uma conta no medium, começar o substack, os textos para Parêntese, e os artigos que escrevi nesse meio tempo. Um deles, inteirinho, foi pro lixo inclusive. Não é como correr, em que posso pegar o celular e ver minhas estatísticas de quantos quilômetros corri desde que fiz a conta no Strava.
Nas últimas semanas, solapado pelo estado de coisas na universidade, pela ansiedade das chuvas, e talvez pelos últimos três anos, meu corpo decidiu que deu. Estou escrevendo de pijama ainda, algo impensado nos últimos anos, quando me levantava muito cedo até mesmo aos domingos para fazer, fazer e fazer. No sábado, ajudei minha irmã, com os olhos igualmente cansados, a trocar as fraldas do meu sobrinho, e quando o passei para o colo dela, como fazia com nossas bonecas e ursos de pelúcia, no quarto que dividimos e nos bancos de trás dos carros onde crescemos dormindo, brincando e aprendendo a falar outro idioma juntas, senti uma imensa vontade de chorar. Lembrei dos tubos cor de rosa de Proderm. De tudo que era cor de rosa: Proderm, Caladryl, permanganato de potássio, AAS infantil e xarope de amoxicilina. Das fraldas de pano estampadas com a Dama e o Vagabundo que tinham sido minhas e que serviram também para limpar o que ela regurgitava. Dos cigarros do meu pai e dos cabelos curtos da minha mãe.
Quando, me perguntei, viramos essas mulheres? E quando, me perguntei, minha irmãzinha tinha crescido?
Achei que fazer quarenta anos seria uma experiência tranquila, como foi ter feito trinta. Me lembro de amigos virem falar naquela idade com um tom de certa melancolia, mas eu me sentia como se tivesse nascido com trinta anos desde sempre, alguém que prefere ir cedo para o bar para poder voltar cedo para casa, que não gosta de estar prensada a uma multidão de gente suada, que gosta de conversar sem ser gritando por cima de música alta. Uma senhorinha com ascendente em capricórnio. Agora eu subitamente me sentia livre para deixar de fazer todas essas coisas.
Um amigo meu brincou meses antes do meu aniversário:
“Tu não pode ter quarenta anos, tu tem essa cara,” e arremedou o elogio com, “e desde que te conheço tu tem na verdade sessenta.”
No meu aniversário de quarenta anos, estava em Buenos Aires. Passei a manhã escrevendo, à tarde fui a um seminário, voltei às oito da noite para casa e comi empanadas da esquina depois de falar com meus pais e minha irmã, ainda grávida, em uma video-chamada. Não tinha sentido ainda o peso disso tudo.
Entendi depois de um tempo o que eu já vinha elaborando e que dois amigos meus falavam sem que eu desse muita bola. Que a pandemia passou e para o pessoal da nossa faixa etária, foi como se não houvesse transição para o começo da meia idade. Um dia saímos à rua e vimos que estávamos mais velhos, sem paciência para uma série de coisas e nos sentindo muito distantes de quem antes achávamos que eram nossos pares. Para quem é professor e sempre se sentiu relativamente próximo de nossos alunos, essa sensação foi ainda mais aguda. Nós envelhecemos, mas nossos alunos não. Eles têm sempre a mesma idade e nós só nos afastamos dela. Para nós, a meia idade foi transfigurada não apenas no momento em que tu te dá conta de que está na metade do caminho, como também foi acompanhada de dois anos de ter medo de morrer, de encostar em outras pessoas, e eu em específico, de um pavor irracional de lugares cheios e muita gente, um pavor piorado. Sair do chamado isolamento social ironicamente foi acompanhado de um sentimento imenso de solidão, de não me reconhecer mais no que fazia antes e naqueles semelhantes a mim. Algo diferente do conforto anterior que eu sentia estando sozinha.
“Quero me divorciar e comprar uma Ferrari,” brinquei esses dias.
Porque quase nada, preciso dizer, do que eu fazia, queria e mesmo dizia antes tem muito sentido para mim agora, o que por vezes me preenche de uma culpa enorme. Leio sobre o hábito quase instintivo do jovem porto-alegrense de se aglomerar numa calçada para tomar cerveja de pé, coisa que muito fiz, e sinto quando não um descompasso, um rechaço de “não acredito que ainda fazem isso”, seguido de “se fizessem na frente da minha casa ia ficar puta”. Só que quem não quer fazer isso sou só eu, porque sei lá, estou velha e depois de dois anos trancada em casa, um deles em depressão, isso me parece estranho.
A ansiedade de não querer dar marcha ré, mesmo sabendo que não existe tal coisa. Heráclito e o rio.
Ou a ansiedade de ficar parada, sendo o que minha mãe chama de “indócil”.
“Daqui a pouco tu vai começar a tremer os braços também?”, me perguntou minha irmã de onde amamentava Tomás, me assistindo tremer as duas pernas na poltrona onde estava sentada.
E daí entendo que parte de minha “velhice” é apenas mudança. Como minha própria irmã mudou, depois que decidiu fazer algo que eu não me sentia capaz de fazer na idade dela e ainda não sinto: ter um filho.
Talvez envelhecer seja isso de separar joio do trigo, trocar a pelagem como fazem os bichos e experimentar outra pele. Ver no que dá. Escrever.
(A imagem é um quadro de Remedios Varo chamado Ruptura, de 1955)
Tenho lidado bastante com esse sentimento da "meia idade" na condição desse 2023 ter chegado com uma mudança de diversos de aspectos de conduta e pensamento (pra melhor, no que me parece). Aí fico oscilando o tempo todo entre o "que bom né" e o "porque diabos não fiz isso antes".
Vc é ótima com as palavras! 🫶🏻