Uma história da loucura
Inspirada por um amigo, decidi escrever a respeito de vidas passadas: minhas e da política estadunidense.
(A Festa do Chá de Boston, em 1773, numa gravura de 1789)
Há muitas vidas, eu era uma pessoa que pesquisava história dos Estados Unidos e, por consequência, acompanhava com muito afinco a política de lá. Fui uma leitora do Huffington Post, assistia MSNBC por links piratas nas noites de primárias, e o Daily Show with Jon Stewart no site do Comedy Central, por um streaming mais do que capenga. Se você, cara leitora, não entendeu nada dessa última frase, dê graças ao deus de sua preferência, porque eu não estava bem. Nos dezoito meses que levei terminando, isto é, escrevendo inteira minha tese de doutorado, Jon Stewart era das poucas pessoas e coisas que me faziam rir, entre os idos de março de 2011 e os de julho de 2012.
Cometi umas 240 páginas sobre a história de um país que não era o meu e depois segui errando por aí, sem saber onde ia parar.
Achava ainda, naquela época, que meu futuro estaria, talvez, no cheiro muito típico das casas de madeira de alguma cidade pequena em uma das costas norte-americanas, com decks para jardins onde esquilos correm por cima das latas de lixo e as cozinhas têm triturador de comida nos ralos. Não sabia como, nem quando, até 2018, quando passei a associar esse anseio com a infância. Fiquei apenas com a compulsão por pasta de amendoim adquirida numa daquelas casas (um hábito que meus pais estranharam) junto com essa língua que subrepticiamente sai no meio das frases em português quando me sinto confortável com as pessoas.
Vivi, em intervalos curtos mas intensos, nos Estados Unidos nos anos Clinton e nos anos Obama, em cidades universitárias, quando criança e depois adulta, por minha conta. Fui vizinha de porta dos lixeiros com minha família numa avenida relativamente movimentada de Albany, na Califórnia, em 1996, onde também morava John Fogerty, o vocalista do Creedence Clearwater Revival. Depois aluguei um quarto numa casa em New Haven, Connecticut, que ajudava uma mulher que tinha sido secretária executiva, demitida na crise de 2008, a vencer as contas de fim de mês. O processo de ir dos lixeiros que tinham grana para ser meus vizinhos à história de Cynthia, que me deu um livro de poemas de presente e um abraço antes de eu ir embora, é algo no qual volta e meia penso.
Cynthia era daquelas pessoas meio “Eric Hobsbawm” que parecem sempre estar onde as “coisas acontecem”. Estava em San Francisco nos anos 60 e em Berlim, trabalhando com um cargo administrativo no exército, em 1989. Trabalhava como vendedora na Ikea depois de perder o último emprego, complementando a renda com o aluguel de todo o resto da casa que ela não habitava: dois quartos e toda a parte de baixo. Tomava vinho branco com gelo, torcia para o Pittsburgh Steelers, e tinha uma gata chamada Shadow, arisca, que me deixava tão somente chegar perto dela nos dias bons. Nas conversas que tínhamos sobre a ilha da cozinha, uma vez me disse que nos anos 1970 tinha tido um crush em Joe Biden, não sei de quão longe, já que sabia que ela tinha vivido em Delaware.
Recebia filmes da Netflix pelo correio em DVDs e, na secretária eletrônica da casa, eu às vezes ouvia chegarem os robocalls da senadora Rosa De Lauro, de quem Cynthia era eleitora.
Quando a biblioteca da universidade onde eu estava fazendo “doutorado sanduíche” fechava aos domingos no final da tarde, me escondia entre as mesas semi-vazias de um café chamado Blue State. Era onde eu sabia que ocorriam as reuniões do partido representado por essa mesma cor hoje nos mapas eleitorais, um evento recente. Perto de eu ir embora, em setembro de 2011, Cynthia me contou que as reuniões estavam bastante vazias, a base do partido desmobilizada ainda pela lapada nas Midterms, as eleições de meio de mandato, e pelo advento do que eles chamaram Tea Party.
Para quem não lembra ou não sabe, o chamado Tea Party foi o MBL deles. Surgiu como um bando de gente branca meio enfurecida, diziam, porque estavam pagando impostos demais para que outras pessoas tivessem privilégios. Nada tinha a ver, eles alegavam, com a clivagem criada na narrativa dos Estados Unidos para consigo mesmos causada pelo advento de um presidente negro, ainda que um de classe média, cosmopolita, com uma mãe branca antropóloga que o levou para morar na Indonésia e depois no Havaí. “Não sou racista, mas”.
Também foi nesse contexto em que surgiu a equivalência da esquerda com o nazismo — essa não foi uma invenção do bolsonarismo.
(Um outdoor colocado pelo Tea Party de Iowa e que foi removido por ser considerado absurdo demais, porque enfim.)
O Tea Party, em 2010, elegeu uns meninos educados e bonitos para o Congresso e alguns governadores, entre eles Scott Walker, no Wisconsin, que a la Milei, meteu um pacotão liberal, entre eles a proposta de acabar com os direitos dos sindicatos. Esses rapazes faziam exercícios físicos, citavam clássicos da economia e também se apropriaram desse evento histórico no qual, rechaçando as restrições da Coroa britânica à compra de chá nas colônias americanas com aumento de impostos e reforçando o monopólio da East India Company, os habitantes de Boston atiraram a carga de chá de uns navios ao mar.
Fizeram isso, aprendi numa escola na California, fantasiados de indígenas em 1773.
Os romances que eu estava estudando no doutorado e nas bibliotecas naquele verão em New Haven são justamente, veja bem, sobre a Guerra de Independência dos Estados Unidos. Uns romances meio chatos, mas que hoje dariam boas séries da Netflix pois tratam a guerra como ela foi sentida ainda pelas gerações que a seguiram: uma guerra civil, o reclame de gente que estava mais movida pelo bolso do que por nobres ideais. O autor que estudei era filho de um cara que enriqueceu às custas da expropriação daqueles leais à Metrópole e se casou com a filha de uma dessas famílias. Ou seja, o processo de independência era muito próximo, e um evento que ferrou com muitos indígenas, escravizados e que é mais complexo do que sair berrando por aí que imposto é roubo, com uma bandeira hoje associada à supremacia branca, na qual uma serpente grita por não ser pisoteada.
Era estranho, admito, ver as referências ao período em que eu estava estudando serem mobilizadas no presente, mas na época não tive o ímpeto de escrever a respeito. Nós, historiadores, ainda não fazíamos isso.
Lá pelas tantas, o Jon Stewart que me fazia rir decidiu que o mundo estava louco demais para ele. Stewart se lançou na televisão para fazer troça principalmente da própria televisão e dos canais de notícias 24 horas que tinham se convertido rapidamente no que os gaúchos reconheceriam como o programa “Polêmica” do Lauro Quadros. Cynthia, que era mais sã que qualquer um de nós, não via tv. Só ouvia a National Public Radio, uma instituição também demonizada pelos meninos liberais esses e na qual as pessoas tendem a falar manso. De qualquer forma, antes mesmo de eu ir a New Haven, Stewart organizou um “comício pela volta da sanidade mental”, para reunir pessoas que não achavam normal a associação de Obama ao comunismo e ao nazismo, que se pudesse comprar fuzil em supermercado e o fato de que Donald Trump começava a se esgueirar pelos cantos dizendo que Obama tinha nascido secretamente no Quênia.
Suponho que a sanidade mental a qual ele se referia eram os anos Reagan, ou o mandato de “Bush pai”, de Clinton, quando tudo era mais ou menos normal. Eu, em retrospecto, acho que 2010 e 2011 parecem até mesmo pacatos.
Mas eram? Ao invés de me perguntar sobre quais privilégios os membros do Tea Party — e seus emuladores que despontavam nos movimentos estudantis nas universidades brasileiras e que hoje têm cargos legislativos — me pergunto a que normalidade Stewart queria voltar.
E, mais ainda, porque quando falamos de radicalização sempre se fala de dois lados — de polarização — e não disso: uma turba raivosa, mobilizada ardilosamente ao longo de décadas, como explica esse texto do
. No Brasil, o processo, digamos assim, foi um tanto quanto parecido. Venderam uma ideia e teve quem comprou. E a ideia era de que muitos de nós éramos de “esquerda”, éramos intolerantes e radicais, quando nem éramos tanto assim.Os loucos sempre são os outros, afinal de contas.
baita texto, Rê. Eu acho interessante, também, como a consideração do "normal" também vem numa curva, né
não consigo colocar em palavras quanto gosto do que você escreve, Renata!