(A posse de Abraham Lincoln, em 1861, na frente de um Capitólio inconcluso, como tantas outras coisas)
Essa semana, Jeff Bezos decidiu que o jornal que comprou recentemente, no qual trabalharam Robert Redford e Dustin Hoffman, quer dizer, Bob Woodward e Carl Bernstein, terá apenas artigos de opinião que se alinhem aos seus princípios. Esses princípios seriam a defesa das liberdades individuais e o livre mercado. Como hoje existe a internet, ele argumentou, as pessoas que quiserem ler algo diferente podem procurá-lo em outros lugares. Não fiquei chocada. Era assim, até onde sei, que funcionava a imprensa partidária até meados do século XX, quando aos poucos foi ganhando maior espaço, entre os jornalistas, um Papai Noel chamado imparcialidade. Hoje esse ditame impede que até o mais reles cronista de futebol, de um lugar de relativa existência como o Rio Grande do Sul, oculte para que time torce como se esse dado fosse como os códigos de acesso a mísseis nucleares escondidos em algum ponto da tundra soviética.
Enquanto estamos todos ocupados reclamando não da segunda-feira, mas do capitalismo, e pintando bigodinho de Hitler na cara de Elon Musk, o fato de que Bezos operou essa manobra num jornal de Washington D.C. me cravou no chão dos arquivos, como os títulos acadêmicos que tenho me comandam a fazer. Não tenho uma bio descritiva do que faço nas redes, então para quem não sabe, sou uma modesta professora de teoria da história, uma subárea que no Brasil tem sociedade, revista e congressos próprios, a diferença de muitos outros lugares. Somos um bando de nerds que se preocupa com as formas com as quais se articula isso que chamamos passado e tempo histórico com certos métodos, que geram isso que se chama história, uma disciplina acadêmica e escolar (como já foi a retórica, por exemplo) que, enquanto uns acham dispensável ou xarope, outros têm um interesse nostálgico e sentimental, similar a ler Superinteressante na infância.
Para muitos por aí, com pressa de trocar o tempo em que vivemos, em enxergar rupturas, Bezos é um dos senhores feudais tech para qual nós servilmente trabalhamos toda vez que postamos algo online. Me causou graça o fato de ser um economista o proponente dessa discussão, já que, como quis nos ensinar Fernand Braudel, os ciclos econômicos tendem a ser mais rápidos do que a longa duração que serve de filé aos historiadores. Não vou entrar no mérito das discussões em torno de se feudalismo é uma categoria adequada de análise até mesmo da Idade Média, mas algo do comunicado de Bezos me pegou nos “meio dos corno” em relação a essa discussão, principalmente pensando nas agruras pelas quais passam os empregados dos depósitos físicos da loja deste senhor e das lutas deles para sindicalizarem-se, ter algo de dignidade.
Toda a negociação em torno de onde seria fundada Washington, a capital dos recém fundados Estados Unidos da América, se deu ao redor das disputas entre estados do sul e do norte, com as elites destes primeiros saindo vencedores naquela ocasião. O chamado Distrito de Columbia fica entre os estados então escravistas de Virginia e Maryland e o estatuto das cidades de seu entorno foi debatido incessantemente pela influência de movimentos abolicionistas até a Guerra Civil. Depois de ter a escravidão abolida nele por Lincoln em 1862, se tornou um hub de escravizados que fugiam do sul para servir junto às tropas da União ou tão somente buscar liberdade, essa palavra que aqueles que o detinham como propriedade gostavam de invocar.
O Washington Post só foi fundado uma década depois do fim da Guerra Civil, mas ficou associado, na década de 1970, ao vazamento dos “Pentagon Papers” e ao escândalo de Watergate, que derrubou Richard Nixon. Sabemos como são os jornalões no que diz respeito às elites, suas dubiedades e concessões conforme os ventos políticos, mas nesse caso especial de ruptura com o senso comum do que seria um jornal, não tenho como não associar os “princípios” de Bezos com o argumento dos sete estados que decidiram “deixar” os Estados Unidos da América em 1861. De acordo com suas elites, ao eleger alguém como Abraham Lincoln, os Estados Unidos estavam indo contra suas liberdades individuais de possuir e comerciar seres humanos ao preço que mais lhe era conveniente. Liberdades individuais e livre mercado, eles diriam, garantidos por seus respectivos estados em contrapeso aos poderes da União. Nada muito diferente de dizer que leis trabalhistas tornam o empregador escravo do funcionário, veja só.
Alguém, vinculado à fina flor do liberalismo, me diria que a liberdade individual é justamente uma resposta aos modos de produção que antecedem o capitalismo, como a escravidão e a servidão, já que pressupõe um sujeito universal, sem cor de pele, livre para trabalhar e receber um salário. Esse mesmo capitalismo que há uns dias vem sendo declarado morto para dar lugar ao “tecnofeudalismo”. A questão é que, mesmo no capitalismo, as ideias de humanidade e liberdade tal como concebidas entre os séculos XVIII e XIX jamais se aplicaram de todo a uma série de indivíduos, não apenas, por óbvio, aos africanos sequestrados e escravizados na América, mas também os milhares de europeus pobres que migraram para esse continente em estatuto de servidão por contrato ou dívida. Como disseram os alemãozinho que escreveram um panfleto famoso em 1848, a burguesia logrou muitas coisas, entre elas transformar a ideia de livre mercado em uma ideia abstrata de liberdade em tese aplicável a todos, até que não.
Estamos num momento em que jogamos “ismos” para todos os lados, tentando descrever com palavras de antanho o que raios está acontecendo no mundo, agora agregando “tecno” a feudalismo e fascismo como se ferrovias, metalurgia e petróleo não fossem também tecnologia e só agora essa palavra ou conceito tivesse peso na ordem das coisas. E nessas redefinições perdemos de vista, a meu ver, algumas coisas.
Quando saiu a denúncia ao ex-presidente do Brasil essas semanas, um gringo inadvertidamente demonstrou seu amor por apanhar no Bluesky quando postou que se sentia envergonhado de que os Estados Unidos tivessem uma democracia mais frágil que a Coreia do Sul e o Brasil. Isso desatou um desfile quase carnavalesco em homenagem à Constituição de 1988, como se esse documento, na mão de juristas, já não tivesse sido usado para respaldar o mais improvável dos impeachments. Eu, na verdade, senti o que sempre sinto em determinados lugares, entre eles a Argentina: que meu país, dentro das lógicas das liberdades individuais e do livre mercado, tal como postas no século XIX, é um país de não-brancos, não importa o quão branca seja sua elite. Gente não-branca ou confusamente algo entremeio, não deveria viver numa democracia saudável, de acordo, principalmente, com a ideia do American Exceptionalism.
Os Estados Unidos são um país tão excepcional que o primeiro presidente católico eleito teve seu pai associado à máfia porque, do contrário, como explicar um irlandês — representados no século XIX como macacos na imprensa americana, ou seja, brancos menos brancos — que poderia enriquecer?
“Nosso país não chegou até aqui sendo típico”, disse Jeff Bezos, como se existisse tal conceito. O que caralhos seria um país típico? A França? A Inglaterra? No caso dos Estados Unidos, podemos dizer que é um país que ainda lida — como o Brasil do século XXI — com quem pode sair do trabalho e chegar em casa vivo a depender de sua aparência, com sua humanidade sempre no fio de uma navalha ou sendo alvo de um revólver.
Algo parecido com a África do Sul, aquela do Apartheid, de Elon Musk, cuja geografia, sinistramente, é tão cara à nossa ideia de lusofonia.
Nada disso é só sobre o capitalismo. É também sobre quem é gente e quem não.
Perfeita sua análise. Obrigado.