Segmentos
E se até mesmo a violência como resposta e ação política estiver enclausurada em bolhas?
(Uma ilustração pouco verídica do assassinato de Francisco Ferdinando e sua esposa, pelo bósnio Gavrilo Princip, La Domenica del Corriere, julho de 1914)
Faz tempo que trabalho em casa com a televisão ligada com algum ruído de fundo, seja futebol, seja notícias. Ao se tornar impalatável a Globonews, decidi colocar rádios e streamers argentinos para me fazer companhia, não só por meus afetos, mas também porque creio que esse país tem telegrafado alguns de nossos desarranjos políticos.
Essa semana, enquanto ouvia uma entrevista com o escritor e roteirista Pedro Saborido, me chamou atenção a frase “el estallido está segmentado”, referindo-se a uma comoção social como a de dezembro de 2001. Tal como as coisas que nos chamam a atenção na internet, restritas a bolhas, ele e seu entrevistador diziam que a indignação também parecia estar assim, descontínua. Falavam de influencers, streamers e podcasters de extrema-direita que, como seus pares no Brasil, faltam com respeito às pessoas e depois se vitimizam quando recebem algum tipo de revide. Também comentavam o grau de violência do revide. Diziam que as pessoas — vivendo em um país que passou a ser caro em dólares para nós estrangeiros, quanto mais para eles — estão ao limite do esgotamento e indo mais do que o costume às vias de fato. No entanto, essa violência não se manifesta contra o governo ou coletivamente e sim de maneira pontual contra o youtuber, contra o vizinho, contra o motorista do ônibus que fez uma barbeiragem. O “ente violento organizado” parecem ser os próprios governos de direita, com movimentos capilarizados que, no passado, tentaram matar Cristina Kirchner e que ameaçam rotineiramente os “zurdos”.
Por aqui não parecemos estar em situação muito diferente há alguns anos, já que vivemos em um país no qual, como os Estados Unidos, há provas de que o ex-mandatário do país tenha encorajado cidadãos a cometer ações terroristas e de tentar provocar um golpe de Estado. Um país no qual ver pessoas atiradas em córregos pela polícia já não choca mais nossas sensibilidades desengajadas. Da mesma forma que apelidamos MCs de Bin Laden e chamamos batidas policiais de Blitz, a relação do brasileiro com a violência parece sempre estar em outra frequência desproporcional de MegaHertz.
Até que mataram um CEO na frente de um hotel. Bad ending: o mundo todo agora é o Brasil e ri das desgraças, as suas e as alheias.
Enquanto escrevia esse texto, estavam, naquela outra ponta do continente, escarafunchando os posts de internet de Luigi Mangione, a quem chamei jocosamente de “nosso Gavrilo Princip, gurias”. Como hoje em dia deixamos um rastro na internet do que pensamos, dos livros que lemos e dos filmes que gostamos, parece simples encontrar as motivações para um sujeito ter aparentemente matado o CEO de uma companhia de seguro de saúde a balaços numa calçada em Nova York. E por mais que seja um crime chocante, uma execução a sangue frio numa cidade supostamente segura, parece que todo mundo teve mais simpatia pelo assassino do que pelo defunto, já que o sistema de saúde dos Estados Unidos é basicamente um ente gerador de dívidas e comorbidades.
Nos primeiros momentos depois da prisão de Mangione ainda não tinham encontrado um manifesto ou algo do tipo, então obviamente foram à caça de sua presença online.
Demissão e uma cirurgia na coluna. Aparentemente, foi isso.
Pensei, enquanto fazia meu paralelo histórico debochado com o homem que, em tese, teria disparado a Primeira Guerra Mundial, que realmente as últimas décadas do século XIX e as duas primeiras do XX foram pródigas em magnicídios, muitos cometidos por anarquistas italianos. Uma vez fiquei boa parte de uma festa de aniversário repassando essa lista na wikipedia com meu primo Guilherme e rindo da coincidência entre nossos connazionali. Como dois netos “de humanas” de um casal de nonnos, sentíamos talvez uma pontada de orgulho.
A questão é que Gavrilo Princip e a maioria dos magnicidas da virada do último século estavam quase todos agindo em prol de grupos políticos organizados, fossem revolucionários, nacionalistas ou vinculados a facções políticas. Digo quase porque há casos isolados, como Charles J. Guiteau, que matou o presidente recém eleito dos Estados Unidos James Garfield em 1881 porque achava que este lhe devia um posto diplomático. Tal como os perfis das redes sociais de um atirador do século XXI, o cérebro de Guiteau foi vasculhado depois de sua execução por enforcamento para que fosse encontrada uma explicação plausível e coerente para seu ato.
O determinismo biológico foi meio a internet que o século XIX nos legou por umas boas décadas, quando pensava-se que os discursos podiam ser visíveis em microscópios e não produto deles.
(Ainda assim, mesmo com as filiações “objetivamente” claras, os magnicidas sempre causam alguma intriga. Basta ver o conto de Jorge Luis Borges “Avelino Arredondo”, publicado em seu Libro de arena.)
Meu ponto é que, até onde se sabe, Mangione agiu sozinho por motivos que lhe tocaram individualmente — suas vértebras trespassadas por parafusos são a foto de capa de seu perfil no finado Twitter. Sua presença online é, aparentemente, um caos dentro do espectro político, apesar das esperanças daqueles que gostariam de ver uma ação organizada contra o sistema.
Um segmento, como cada uma das balas em que escreveu a letra D.
se acreditamos que o coletivo é mais importante que o individuo, então a ação do mangione pode deixar de ser um ato emocional e sem praxis, para se tornar o gatilho pra uma revolução, agora é missão nossa (na verdade, da esquerda americana) se organizar