(A Rua da Praia, em Porto Alegre, 1926 - Arquivo do Correio do Povo)
Na enchente passada eu não perdi minha casa. Não tive que sair dela, como muitos que conheço, que com o hall de seus edifícios inundados, ficaram esperando longamente a água baixar. Tive o incômodo de ficar sem água na torneira por semanas que se estenderam mais do que a paciência e o cheiro vindos dos ralos e do vaso sanitário permitiam. E ainda assim.
Desde que comecei a viajar para dar aula e a correr na rua, me tornei uma pessoa que sempre sabe como, quando e o quanto vai chover, de acordo com a previsão. Ao contrário de muita gente, não me surpreendo com um frio repentino, com uma pancada de chuva aleatória, com uma escalada de temperatura no meio do dia. Não me dou ao luxo de ser aqueles que dizem que a previsão “sempre erra”, porque a verdade é que isso raramente acontece. Se meus aplicativos dizem que a temperatura estará na casa de um dígito, meto três pares de meia de trekking na mala, mesmo que na maior parte das vezes elas recebam o frio de Jaguarão com desdém. Nesse sentido, transitar pelas ruas e pelo estado me tornou também alguém mais ou menos dona do céu. Como todo usuário de transporte público sabe, o céu nos impõe uma relação que talvez quem dirija um carro de boca em boca de estacionamentos privados jamais compreenda.
A questão é que o problema não é o céu. O problema é o chão e aqueles que nele rastejam.
No mês passado visitei Bahía Blanca, na Argentina, uma cidade com fama de feia (ver o romance de Martín Kohan que a tem como título) e que também inundou recentemente, daquela maneira que gera pedidos de doações, preces e ajuda. Quando comecei a apresentar meu trabalho, disse que vinha também de uma cidade inundada. “Ciudades hermanas,” me comentou o moderador, com um suspiro melacólico. À diferença do Brasil, que no momento é governado por alguém que não despreza o Estado, o governante argentino acha que se uma estrada deve ser asfaltada ou consertada, tem de haver uma demanda imediata do mercado para tal e não o simples fato de que, por causa das demandas do mercado em outro século, já há pessoas que dependem desses caminhos previamente estabelecidos. Como se isso que chamamos infraestrutura — pensem nas ferrovias do século XIX — não fosse fruto dos interesses de poucos e só depois coletivos. Bahía Blanca, carente de obras públicas e com arroios encanados, é apenas mais uma vítima de uma compreensão da política e da economia que percebo como cada vez ahistórica.
Andei somente no centro de Bahía Blanca e vi poucos indícios do desastre de meses antes, confesso. E isso que tenho o olhar agora treinado para procurar marcas na parede, bueiros entupidos, pasto queimado. O que sim me chamou a atenção é que, no limite norte da Patagonia, quase não passei frio. Estava toda revestida de roupas de inverno, mas quando entrava nos lugares podia relaxar, porque ao contrário do Rio Grande do Sul, ali se reconhece o frio e a umidade vinda do mar como algo dos quais se proteger. Caminhei por suas ruas com minhas bochechas geladas sabendo que quando eu abrisse uma porta, ela ia se fechar firmemente atrás de mim.
Quase um mês depois, numa manhã de dois graus centígrados, fui pegar um ônibus entre Jaguarão e Pelotas para voltar para casa. O ônibus não tinha sequer porta divisória entre nós e o motorista, ou seja, não tinha aquecimento. A passagem custa mais de 65 reais e nós ali cravados em nossas poltronas, a maioria com muito mais roupa do que deveria, duros de frio. Vivemos, no chão, em negação com o céu.
Não surpreende, portanto, que essa semana, quando estou espalhando pela internet flyers de um livro que escrevi sobre como o Rio Grande do Sul — e especialmente Porto Alegre — é um lugar que inunda, em que a água está no ar e quase sempre desabando sobre nós, subindo nos leitos dos rios, estejamos nessa ciranda novamente. Já há dois mortos, incontáveis pessoas fora de casa, e uma quantidade imensa de traumatizados que não conseguem mais dormir com um ruído antes companheiro do mate com bolachinhas em tardes preguiçosas. Aquele do “chove na tarde fria de Porto Alegre”.
O termo “abobado da enchente” apareceu depois do nosso evento limite de 1941 para designar aqueles que, como eu, ficam transtornados com qualquer chuvinha. Creio que os impropérios não deveriam ser direcionados a nós, que sim vemos o céu, mas sim a quem não o reconhece e portanto não faz qualquer coisa para aliviar seus efeitos. Um fenômeno que me parece transversal e não só limitado ao espaço político.
Desde que acompanho seu substack, esse foi o texto que mais me emocionou. Espero que fique tudo bem, na medida do possível.
Estamos abobados da enchente mesmo, essa abóbada celeste que cai e sobe em águas. Minha mãe, que mora no interior de Santa Cruz, já deixou os cachorros em um abrigo em um terreno mais alto e está andando com uma mochila com os itens essenciais. É difícil que chegue até nossa casa, como foi no ano passado, mas o medo está aí.