Estou escrevendo isso enquanto uma gata dá pequenos tapas na manga do meu moletom. Vera quer o que estou comendo, que ela não poderia, de qualquer maneira, comer: uma fatia de pão com manteiga de amendoim. Problema é que ela sabe que comigo tem precedentes pois dei puré de calabaza para ela no almoço sob o olhar reprovador de seu tutor, responsável por sua educação desde que ela foi resgatada no pátio de um hospital público de Buenos Aires.
Na sexta-feira, uma aluna, à guisa de me dar feliz dia das mães, me perguntou se eu tinha filhos e, diante da minha negativa, disse “deve ser mãe de pet, então”. Fiz que não com a cabeça. Nem sequer isso. Como me disse minha psicóloga, ser cuidadora, coisa que faço com Vera ocasionalmente, não é a mesma coisa que ser mãe.
(Tive de interromper o que estava escrevendo pois ela decidiu enfiar-se dentro do roupeiro entreaberto para se aninhar entre sapatos e tive que chamá-la usando um barbante e um nada maternal “salí de ahí, pelotuda”.)
Passei o dia das mães longe de minha mãe e de minha irmã mais nova, que se tornou mãe há pouco menos de dois anos. Não me dei conta de que o dia das mães do ano passado foi atravessado pela enchente e que, portanto, não estivemos as três juntas naquele segundo domingo de maio. Talvez por isso sabia que havia algo de excepcional esse ano, ao menos para elas. Acordei me sentindo estranha no domingo porque aos quarenta e dois anos decidi que, em definitivo, não quero ser mãe de ninguém. Para alguém que gosta da companhia de crianças, foi mãe de incontáveis bonecas, é irmã e prima mais velha, uma decisão assim, até mesmo meio tardia, não deixa de ser incômoda.
Incômoda porque, na minha família, todas as mulheres que me antecederam foram mães. Leia-se, não tenho bússola para me tornar quem estou me tornando. É incômoda também porque sei que não existe nada de especial em minha decisão e por um motivo bastante triste. Muitos de nós não querem ter filhos porque as perspectivas de um futuro minimamente bom têm encolhido cada vez mais, seja por condições materiais, seja pelo fato de que a Terra parece estar nos cozinhando a um fogo não tão lento assim. Vai de encontro a existência dos boomers, crianças concebidas durante a Segunda Guerra Mundial, tão definitiva para nossos apocalipses e, atualmente, farol para muita gente da pior forma que podemos conceber. Fato é que estamos nos abstendo de nos reproduzir, algo que não depõe muito a favor de nós mesmos. Alguns, buscando nos convencer do contrário, argumentam que vamos nos ferrar porque não teremos quem cuide de nós na velhice, o que piora ainda mais a situação. Dá a entender que ter filhos seria, antes de um gesto coletivo de continuidade da nossa espécie, tão só a garantia individual de ter alguém que troque nossas fraldas geriátricas.
Minha decisão também se torna incômoda, ao menos para mim, porque as circunstâncias nas quais a tomei são geradoras de ansiedades genocidas em pessoas como Elon Musk, um sujeito que tem deixado mais evidente do que nunca que os racismos que guiaram as maiores catástrofes do século XX estão mais vivos do que pensávamos.
Não tem sido cômodo, perdão pela insistência, me dar conta do que exatamente estamos vivendo.
Estou lendo a chamada Trilogia de Copenhagen, da poeta dinamarquesa Tove Ditlevsen, a mulher na foto acima com as três crianças. Trata-se de uma edição conjunta de seus três volumes de memórias, Infância, Juventude e Dependência, criada em 2019, para parecer com a Tetralogia Napolitana de Elena Ferrante, ou ao menos é o que a referência a Ferrante na capa me leva a crer. Ao contrário dos livros de Ferrante, no entanto, os de Ditlevsen não são ficcionais, nem são assinados por um pseudônimo. Longe de ter as soluções satisfatórias dos romances sobre Lenù e Lila, vou encerrar a leitura de uma narrativa a respeito de como uma menina de classe trabalhadora chegou à fama, na primeira metade do século XX, sabendo que ela se matou com uma overdose de soníferos anos 1970.
Seja como for, algumas das experiências de Ditlevsen são próximas demais para causar certo desconforto. A sensação de inadequação, a admissão de sua ignorância, o fato de que a ideia de se casar com um homem ou ter um trabalho “estáveis” lhe causavam certo rechaço. Entendo tudo isso, mas não só.
O que entendi bem demais foi quando a narradora descreve alugar um quarto na casa de uma mulher nazista, que tem um quadro de Hitler na parede e insiste que ele será quem resolverá os problemas do mundo naqueles anos 1930. A jovem Tove odeia sua senhoria. Criada por um militante social-democrata, viu a vitória de Hitler como um augúrio terrível. E, ainda assim, não deixa o apartamento daquela velha horrorosa em busca de alguém mais palatável com quem conviver. Segue alugando-o por quarenta coroas, isto é, correndo o risco de ser “onze nazistas numa mesa ao invés de dez” porque lhe é conveniente. Da mesma forma com que aqueles de nós que não temos pretensões de extremo purismo nos acostumamos a dividir espaço com pessoas que defendem Jair Bolsonaro, Donald Trump e Javier Milei, ainda que de maneira esporádica. Considero que minha comparação não é exagero depois do anúncio dessa semana de que os Estados Unidos aceitarão refugiados Afrikaners. Na prática, refugiados de “racismo reverso”. A meu ver, não há mais forma de desconectar a ascensão desses movimentos com a ideia de uma reação a alguns consensos construídos depois de 1948 ou, na América do Sul, no final dos anos 1980.
Isso tudo tem a ver com maternidade porque esses movimentos não apenas alocam virtudes a determinado perfil étnico, mas também têm a pretensão de colocar a nós, mulheres, em nosso lugar. Vide a quantidade de conteúdo feito por “esposas tradicionais” que hoje estão nas redes, casada à defesa do ensino domiciliar das crianças. Antes aberto, o horizonte de muitas meninas ameaça fechar-se de maneira mais intensa do que na época de Tove Ditlevsen, a mesma época em que Simone de Beauvoir recém começava a escrever e os bancos universitários se enchiam de garotas como algumas de nós. Não sei, sinceramente, se não estamos nos encaminhando para algo muito pior.
Pelo bem do menino que minha irmã está criando, espero que não.
É muito bom ler isso. No meio em que vivo, sou a única na minha bolha social que não quer ter filhos e sou vista como exagerada ou questionadora demais. É bom encontrar pessoas que enxergam o mundo da mesma forma que a gente.
Que texto forte que fincou nuns lugares aqui... a decisão de querer ser mãe me é igualmente incômoda pelos mesmos motivos.