Não lembro mais quando foi, mas tomei a decisão de tentar ser perfeita. Dizia que sabia que não existia tal coisa, mas dei de ombros e fui lá igual. Achava que assim ninguém mais poderia me machucar, pois não teriam nada a dizer a meu respeito, já que eu não poderia ter feito nada de errado. É claro que meu cérebro não codificou nada disso dessa forma, do contrário não acharia necessário investir em uma terapeuta diante de quem sento semanalmente para destrinchar, como se fosse carne de osso, a barafunda de atitudes que tomo diante da vida. O dia que formulei essa ideia e deixei ela escapulir da minha boca enquanto tentava, com os dentes e a saliva, engolir as palavras de volta, era tarde demais. Ali estava a tal trampa esdrúxula que adotei como mecanismo de defesa.
Essas coisas se manifestam de diferentes formas, por óbvio. No tempo que gasto varrendo a casa quando preciso de um intervalo ao estar lendo ou escrevendo, no olhar afiado como uma faca de desossar que dirijo às coisas, no sentimento de frustração que sinto quando não consigo segurar o ritmo de uma corrida ou uma postura na yoga. Ou na tristeza que me acomete quando sinto que não controlo meus impulsos, quando acho que escrevo as coisas mal ou me atenho a sentimentos que achava que já deveria ter superado.
Desde que me conheço por gente me sinto sempre em dívida com tudo e com todos, o que só aumentou depois dos últimos anos. Sinto que tenho de desempenhar essa excelência até na terapia, aquela que muitos homens colocam em suas bios em aplicativos de relacionamentos que está em dia. Segura essa, malandro: eu pago meus boletos como ninguém, tenho níveis excepcionais de HDL e minha casa está quase sempre impecável, varrida até não sobrar um único fio de cabelo no chão.
A questão é que tentar ser perfeita me coloca numa posição maravilhosa em qualquer relacionamento que venha a ter: a de vítima. Como é que raios posso ser a algoz de qualquer pessoa se geralmente me porto com tamanha lisura? É tudo cômodo como se fosse uma tarde lendo romances na cama, até que acabo vítima de mim mesma: através da contínua insuficiência das minhas ações, de reprimendas mentais viciosas, entro em um contínuo adiamento de qualquer coisa, como se fosse o apocalipse. Afinal de contas, nada está bom jamais o suficiente nunca e assim me mantenho em estado de alerta o tempo todo, mobilizada.
É complicado falar de vitimização porque a extrema direita arruinou todas as coisas, inclusive qualquer conversa de gente grande a respeito dessas pequenas estratégias cotidianas que adotamos para nos mantermos sãs — e aqui uso o feminino propositalmente —, sobretudo as inconscientes. É ainda mais espinhoso falar disso quando o assunto é essa categoria estranha chamada mulher, dada a todo tipo de generalizações e essencializações imbecis. Mas igual, falo aqui que deixar de nos percebermos como vítima significa reconhecermos nossa própria agência em situações que nos fazem mal, mesmo quando essas violências parecem vir do nada e são, por isso mesmo, profundamente traumáticas. A questão é que até essas violências sobre as quais ninguém dá conta de descrever com a linguagem — aquelas que são difíceis de acessar através da empatia pois incompreensíveis — são estruturais e desencadeiam outras violências, mesmo que inconscientes.
Falar de replicação de violências estruturais como mecanismo de defesa e recalque parece conversa de psicólogo de boteco, mas ao fim e ao cabo “é sobre isso”, como dizem os jovens.
Essa semana um amigo participou de um episódio de podcast em que discutiu a situação dos trabalhadores resgatados de regime análogo à escravidão em empresas contratadas por diversas vinícolas na região de Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul. Perdendo muitas vezes as estribeiras, ele destrincha muito bem — como se fosse carne de osso — as dinâmicas violentas intrínsecas às comunidades descendentes de imigrantes italianos e alemães, que vieram para cá com o propósito de tornar o Brasil mais branco, seja substituindo a mão-de-obra escravizada ou sendo pagos para matarem indígenas. Que por trás de cada arbustinho de hortênsia e casinha bucólica naquelas paisagens vendidas ao centro do país para que turistas venham para cá em dezembro de casaco de inverno tomar vinho ruim, há uma espiral de violência e horror que acaba justificando — na cabeça daquelas pessoas — o que elas fazem com outras, diferentes delas.
Quando ele me disse que tinha sido muito difícil falar e que estava se sentindo bastante exposto, “mas que foda-se”, eu disse para ele que tinha pensado — enquanto passava um rodo pela casa exaustivamente naquela manhã, uma gringa indócil — em como me incutiram que se eu trabalhasse e fizesse a minha parte estava tudo bem. Mesmo cansada, mesmo e principalmente nas férias, mesmo se isso resultasse em toda sorte de sequelas ridículas, psicológicas ou não. Usei os termos “me escudo na ética do trabalho”. Ele, temendo me soltar um spoiler ou talvez por estar emocionalmente exausto da discussão, só reagiu com um coração à mensagem.
No dia que saiu o episódio, escutei varrendo a casa e interrompi tudo. Sentei no sofá apoiando a vassoura no ombro para mandar um áudio para ele.
“Mulheres fazem isso o tempo todo umas com as outras,” eu disse, me referindo à replicação cotidiana das violências do patriarcado por amigas, colegas e muitas vezes gente da minha própria família.
Um homem que passe por mim e comente meus peitos, que chegue mesmo a me agarrar sem meu consentimento será sempre o outro, aquele de quem devemos nos proteger, mesmo se no processo estivermos violentando simbolicamente outras mulheres. A primeira vez que sofri algo que hoje seria enquadrado como crime de importunação sexual foi, curiosamente, em um ônibus viajando com o colégio de ensino fundamental, enquanto tentava dormir. Só fui me dar conta disso muito mais tarde, por conta da relação que desenvolvi com minha aparência, meu corpo e com o feminino de modo geral. Hoje, ao contrário de muitas mulheres, consigo viajar de ônibus de madrugada sozinha e pegar no sono sem problema algum, chegando até mesmo a ter sido por um par de vezes despertada na rodoviária, em meio a luzes acesas e gente recolhendo bagagem. “Vai ficar aí?”
Isso porque minha resposta a esses traumas foi lidar de forma muito pior com como esse tipo de violência, na época, foi interpretado pelas mulheres do meu entorno, incluindo minhas professoras. Algo como “acontece, é isso aí mesmo, nós todas passamos por isso” que resultou em um círculo vicioso de recriminações e julgamentos. Todas tendemos a nos percebermos como vítimas e ao mesmo tempo temos o ímpeto de desalojar as outras dessa posição. Achamos, como os homens, que umas merecem mais do que as outras serem tratadas como lixo e que, portanto, devemos sempre aspirar a estar por cima da carne seca.
Se a leitora lembrou do monólogo sobre a cool girl de Garota exemplar, é dele mesmo que estou falando. Minha saída para lidar com o feminino e com os homens foi me tornar uma delas.
Semana retrasada fui indagada sobre a cultura de competição disso que chamamos mulheridade heterossexual e fiquei um bom tempo matutando sobre como abordar isso sem cair nos lugares comuns de que o mundo feminino é esse inferno de fofoca e sentenças sumárias em que estamos todas tentando angariar a atenção dos homens e umas das outras. De que quando nos maquiamos e arrumamos isso é mais direcionado às outras mulheres do que propriamente para agradar os nossos parceiros ou parceiros em potencial. Ou então de que o patriarcado ativamente alimenta a competição entre as mulheres para nos desunir, nos colocando assim todas no lugar de vítimas, até segunda ordem.
A lógica da replicação de violências me pareceu uma saída, porque abarca inclusive outras orientações sexuais, outras identidades de gênero e mesmo identidades étnico-raciais. Entender dentro dessa chave os motivos pelos quais tratamos umas às outras e nós mesmas de maneira tão pouco generosa quando toleramos tanta coisa vinda de outras partes me parece melhor do que simplesmente apontar dedos. Isso também vale para os silenciamentos, esquecimentos e para as escolhas que lado ficamos nos ambientes familiares e profissionais e que resultam muitas vezes em sermos cooptadas por quem nos vitimiza, deixando de fora nossas companheiras e tornando nossos discursos neutralizados e inofensivos.
É ver que a poeira que está no chão de nossas casas para ser varrida é produto não apenas dos nossos cabelos e células mortas, mas também do que vem da rua e que essencializamos como parte da realidade. Ela também é feita dos cabelos e das células mortas de outras, como nós.
uma pessoa que escreve assim, tá muito além de ser perfeita