(Imagem parcial de satélite da NASA de tudo que é e era nosso, dos rios todos borrados)
Tem circulado por aí o poema Reminiscências, de Mário Quintana, que faz referência à enchente de 1941 em Porto Alegre, um evento que foi o suficiente para mudá-la, mesmo que essas próprias mudanças não tenham sido registradas no inconsciente da cidade. Talvez com medo daquilo tudo, enfiamos até um estádio de futebol às suas margens, a modo de lidar e não lidar com o problema. Nós que vestimos azul chamávamos ocasionalmente os assentos da cancha rival de “boia cativa”, sem saber que nosso próprio gramado e nossos novos vizinhos estariam hoje também submersos.
Talvez como acontecem com muitos traumas, a rejeição do porto-alegrense passou a ser menos ao rio do que às soluções dadas àquele evento, a avenida meio feiosa que se colocou entre a água e o centro aos fundos do Mercado Público, e ao muro erguido não só entre o porto e a cidade mas também entre a adolescência e o início da vida adulta de meus pais, que nasceram mais de uma década depois da enchente.
Eu, ao contrário de uma amiga, de família de pescadores e que cresceu entre barcos na zona sul da cidade — tem uma tia que perdeu tudo — jamais tive uma relação próxima com o Guaíba. Meu contato mais intenso com isso que já ouvi chamado de rio, de lago, de estuário e mais recentemente de singularidade hidrológica, foi virar num caiaque uma vez, pré-adolescente, num dia excepcional de férias. Fechei bem a boca, porque a água desse rio jamais teve a melhor das reputações entre nós que nos erguemos sobre os morros afastados dele e de suas praias.
Todas as páginas sobre o Rio da Prata que li recentemente de Confesión, de Martín Kohan, que são espécie de prólogo a uma expedição de guerrilheiros pelo arroio Maldonado (também conhecido como Avenida Juan B. Justo) para explodir o avião de Jorge Rafael Videla no Aeroparque, me soaram familiares.
“Enchastre de barro y mugres diversas, juntadero amargo de camalotes (si sopla viento del norte) o embate siniestro de inundación y lloviznas (si sopla viento del sur), el río es el incordio de la ciudad. Y cuando no, porque a veces no, es empero la eventualidad de un incordio. Sirve para llegar a la ciudad y sirve para irse; estar en él, o junto a él, o frente a él, es más difícil, menos usual. Asunto de pescadores, y nada más. Y los pescadores están ahí, quietos como el río, mustios como el río, viendo nomás qué pueden sacarle, viendo nomás si le sacan algo.”
Anos depois, um relacionamento me levaria a estar próxima do rio e tive alguns momentos bonitos, até mesmo discussões e brigas bonitas, sobre as pedras que chamam de “trapiche” na praia que algo jocosamente foi batizada de Ipanema.
Quando ia passar os fins de semana na minha então sogra, voltava aturdida com o ruído das avenidas centrais, como se tivesse ido à praia. E de fato tinha.
Ainda assim.
“Leva um casaco, lá é perto do rio,” dissemos e ouvimos, quando nos deslocamos para suas margens à noite.
A foto da qual falei no texto passado é de exatos 83 anos atrás, do dia 7 de maio. A enchente de 41, para mim, nunca teve mês. Isso que me considero alguém relativamente consciente dos ciclos da cidade: o calor gosmento do verão com os temporais isolados, as frentes frias vindas da Argentina para aliviá-lo, o veranico de maio e a luz bonita do outono às cinco da tarde, as massas de ar polar e seco do inverno, que fazem estalar meu céu azul favorito. As chuvas da primavera, que transformam as calçadas numa pasta de flores de ipê e jacarandá como se fosse tinta, os sabiás marcando o início do fim do ano, com a chegada das andorinhas. O rio, com os primeiros temporais de maio, ainda assim, permanecia uma abstração, tão grande quanto os jacarés que eu sabia que ali viviam e um dos quais se materializou no Menino Deus como se fosse o fantasma de meu avô pegando o ônibus na José de Alencar até o Centro.
Sou historiadora, então meço as coisas por séculos e décadas. O homem que ainda serve de parâmetro para quando falamos de tempo histórico, Fernand Braudel, não só escreveu um livro com nome de mar, como também usou e abusou de metáforas aquáticas para falar dele. Disse que a longa duração, análoga à estrutura da antropologia lévi-straussiana, é como as profundezas do oceano, e os eventos esses que chamamos históricos, tão somente a espuma das ondas. Lá na ponta de onde acaba o Guaíba e o Brasil, na Lagoa Mirim, pegada ao rio que tem nome de uma criatura metade cachorro metade peixe, eu desenho todo ano umas ondinhas no quadro para explicar isso. E sempre pontuo que nós é que pensamos assim: os geólogos e os hidrólogos pensam diferente.
“Agora sabemos que um evento como o de 1941 leva menos de cem anos para se repetir,” disse na televisão um professor da universidade onde me formei, onde meus pais trabalham, com a mesma serenidade do meu pai quando me disse na infância que sim, poderia acontecer conosco o que aconteceu com os dinossauros.
Para além de todas as barbaridades que cometeram com a cidade nos últimos vinte anos, acho que a pior delas é o que fizemos com nossas cabeças. Uma delas é acreditar que se pode ser apolítico quando “cidade” pressupõe não apenas a raiz etimológica dessa palavra — a pólis —, como também a cisão entre nós e essa invenção humana e ocidental, a natureza. Os povos que aqui viviam antes não codificam o mundo dessa forma e daí por isso a gente se vê confundindo os modos de como categorizar as coisas e os entes como os rios, e como medir o tempo, por fora da imposição do tempo linear e mecânico.
Comentaram aqui no edifício que tinha água acumulando no poço do elevador e tive que dizer que embaixo de onde estou passa um riacho encanado, sobre o qual penso todas as noites, já que não sai água da minha torneira vinda do rio. Me olharam como se eu fosse maluca e da minha boca saíram argumentos de autoridade mas não que meus pais foram síndicos do edifício e que tenho lembranças do poço do elevador cheio de água antes que se fizessem as reformas para insulá-lo do riacho.
Dei de ombros, expliquei que cresci aqui, que sou irmã do guapuruvu do pátio e que as pedras que fazem esse morro são basalto de uma explosão vulcânica quando isso tudo ainda era África. E voltei para fazer mate com erva argentina e água mineral, o banhado preso nos cabelos, uns sapos diferentes coaxando.
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Todos os dias o Matinal lança uma matéria nova sobre alguma barbaridade que se deixou de fazer e que nos trouxe até aqui. Se querem ler sobre o que ocorre em Porto Alegre, é uma das fontes mais confiáveis.
No meu bairro, a creche Casa da Criança Nossa Senhora Auxiliadora está recebendo desabrigados. Quem quiser contribuir pontualmente sem se preocupar com emaranhados institucionais, minha instrutora de yoga, que é praticamente uma princesa Disney (na melhor acepção do termo), está ajudando a coordenar a operação e continua recebendo PIX. É só depositar o valor com 33 centavos, para fácil controle e prestação de contas. Natália Dumont Longhi, CPF 027.423.390-86. Pode-se acompanhar tudo pelo Instagram do estúdio.
A Unilasalle em Canoas está servindo de abrigo e amparo a muitas famílias da cidade, que foi engolida pela cheia dos rios Jacuí e Sinos, que margeiam a região e que hoje parecem ser uma coisa só.
tem fornecido informações a respeito da operação e quem recebe as doações é o CPF 000.484.280-43, da professora Graziele Halmenschlager, coordenadora de regulação institucional da universidade.Precisamos de água e há muitos canais para doar. Um deles é um pessoal de São Paulo que está arrecadando fundos por via da Ana Paula Vargas Maia, chave PIX (11) 988310952 - os resultados podem ser acompanhados pelo Instagram e pelo antigo Twitter.
Como disse Julia Dantas, que ajudou a me empurrar a começar a “escrever para fora”, não resta uma única pessoa feliz no Rio Grande do Sul. Canais de doação não faltam. Deixei alguns aqui de carne e osso e afeto, porque estamos todos precisando.
Obrigada por continuar escrevendo.
Teus textos, por mais doloroso que possa ser o tema às vezes, trazem paz. Não sei explicar direito, mas é mais ou menos como a imagem do senhor napolitano e sua tatuagem tutto passa. Obrigado. Eles têm sido uma ótima companhia