Estou ficando velha. Já sabia, mas cheguei naquela idade em que tenho de pensar duas vezes se algo é realmente estranho ou se sou apenas mais uma pessoa de meia-idade reagindo àqueles que me sucedem, como quando me pego pensando “meu deus, as roupa dessas guria” entre o divertimento e o escândalo.
Um dos meus romances favoritos tem esse tom de “kids these days”. Foi escrito e publicado entre 1815 e 1816, uma reação meio febril à derrota de Napoleão em Waterloo. Walter Scott, um sujeito com quem jamais me sentaria para tomar um café (e não só porque está morto), criou essa história meio engraçada de um gurizão inglês que, em 1794, vai à Escócia e encontra um antiquário recluso que gosta muito do som da sua própria voz. O velho é uma das três pessoas que ainda usam peruca na cidade, porque os jovens em 1794 sequer colocam talco no cabelo, quando não o cortam ao estilo romano, curtinho. O peruqueiro local é, portanto, um sujeito que nos termos de hoje, teria que ver oportunidade onde há crise e se reinventar. Virar cabeleireiro, criar uma conta no TikTok, ensinar os meninos burgueses a adotar o look sans-culotte.
Quando me pego lendo reflexões longuíssimas sobre como os adultos de hoje estão infantilizados, lendo romance infanto-juvenil e assistindo filme de super-herói, dou uma viajada no fato de que os jovens são, desde a década de 1960, o principal alvo do mercado de cultura de massa, e nós somos os filhos e netos dessa gente que enxergava os próprios pais e avós como caretas, modelos indesejáveis. E também penso que a virada do século XVIII para o XIX também foi uma guinada nesse sentido, em que o enredo do que chamamos de romance de formação majoritariamente acompanhava somente o período da juventude dos protagonistas; não sou eu que estou dizendo, é Franco Moretti. O buraco é sempre, sempre, mais embaixo. Normalmente quando uma historiadora começa a pensar, parecemos aqueles mágicos que tiram um lenço da cartola atado a outro e a outro e outro, até que os lenços acabam porque nosso repertório de leitura tem seus limites.
Comecei a ver El amor después del amor, série da Netflix sobre a vida de Fito Páez, que contou com uma ingerência caleidoscópica dele mesmo e está baseada em suas memórias. Falo ingerência caleidoscópica porque a série acompanha além da turnê de comemoração dos trinta anos do álbum que lhe serve de título, um disco novo com atualizações de suas faixas e Páez divulgando-a e até mesmo entrevistando os atores do elenco em suas redes sociais. Uma vertigem, como as capas do disco dele da década de 90. Como a de Circo Beat, que conta com “Mariposa Tecknicolor”, canção que eu e minhas colegas de faculdade inocentemente escolhemos para encerrar nossa formatura em 2005 e que foi violenta e compreensivelmente substituída na metade por “Festa” de Ivete Sangalo pelo pessoal da produtora.
Ainda não terminei de ver a série e é óbvio que além de não esperar um documentário, tampouco deixo de ter a consciência de que o que produzimos sobre o passado diz respeito ao que no presente queremos tirar dele. Isso é praticamente o que define minha profissão. O que me pegou no contrapé nos capítulos que vi foi meu desconforto com esse presente. Fito Páez, Charly García e Fabiana Cantilo foram e são — como todos nós — pessoas complicadas, com traumas horrendos próprios de seu tempo e mais. Vêm do rescaldo da ditadura militar mais abertamente pérfida da América do Sul, que aparece na série de uma forma meio caricatural, com uns milicos perseguindo uns cabeludos tocando guitarra. O autoritarismo na América Latina não precisava ser demonstrado de forma tão literal, como tão somente um elemento ilustrativo de “olhem, lembrem que ainda estávamos em uma ditadura”. A série elude, por exemplo, o fato de que a proibição de canções em inglês durante a Guerra das Malvinas nas rádios argentinas por esse mesmo regime foi fundamental para a explosão do rock comercial oriundo do país e consequentemente à abertura para que movimentos como a Trova Rosarina chegassem a Buenos Aires. São contradições que tornam períodos assim tão difíceis de se abordar e por isso instigantes.
Além disso, para quem saiu de quatro anos de governo de extrema-direita e de uma pandemia, parece até piada ver retratado de forma tão simplória algo que tem efeitos tão profundos no nosso inconsciente, de pesadelos a nossas formas de nos expressarmos e nos relacionar com a realidade.
Creio, contudo, que o que me deixou mais incomodada ainda foi minha parcela de envolvimento nessa transformação dos anos 80 em algo parecendo um clipe da Banda Mais Bonita da Cidade. Quando digo “minha” quero dizer “minha geração”, essa meio triunfalista dos início dos anos 2000, que achava que tudo ia se salvar com inclusão, bandas de rock com bandolim e acordeão, e que depois saiu a escrever romances como A culpa é das estrelas, originalmente voltado para adolescentes, mas que vi muita gente da minha idade ler. Coisa de gente protegida, suponho, dos horrores do século XX e anestesiada aos horrores do presente, apenas dobrando a esquina. Estávamos ocupados demais sendo virtuosos, principalmente nas redes sociais.
Bizarramente me vi na série de Fito em Cantilo, uma menina meio trôpega e cheia de bagagens, que diz que não tem namorados, apenas amigos, e que se engancha com um magrelo triste de cabelo cacheado e óculos quatro anos mais novo. Essa era literalmente a diferença de idade entre eu e meu ex-namorado magrelo melancólico de cabelo cacheado que me mostrou Sigur Rós. Os pais dele estavam mais para Fito de verdade: são pessoas com uma energia caótica difícil de entender, caleidoscópica, própria desse período tão pouco claro que chamamos de redemocratização. Para mim aquele guri foi calma depois de um turbilhão. Como era para sermos todos, suponho, nós nascidos no anos 80. Mas nada é tão simples. Jamais.
Ando pensando numa piada desconjuntada, que gostaria de ver num sketch. Uma fábrica do século XIX, com operários engolindo traços de algodão e carvão. Nas paredes do pavilhão, mensagens motivacionais, muitas plantas e lâmpadas coloridas, a expressão de um otimismo inocente enquanto tudo vai para o proverbial caralho.
(A imagem é Argentina hoy (1976), de María Susana Raffaele)
Quando resolvi finalmente desativar o Twitter na sexta passada, confesso que fiz com um pouco mais de tranquilidade sabendo que ainda ia receber teus textos e os do Austin Kleon por e-mail.