Lluvias de verão
No verão, aqui, não há outro modo de se caminhar pela cidade sem ser de olhos semicerrados. Não pelo sol, mas pelo peso da água de umas três bacias hidrográficas somado a ele, concentrado no ponto entre minhas sobrancelhas. Os sons do que parecem ser milhares de cigarras, mesmo no asfalto, tornam toda essa água turva, trespassada por plantas; um banhado. Os rios então desaguam na minha nuca, escorrem pelas minhas costas, e perseguidos por ratões, lontras e capinchos, vão parar em qualquer tecido que encontram pelo caminho.
Às vezes, em meio a isso tudo — a cegueira e a água —, ligo a televisão e mendigo um jogo de futebol em um dos países vizinhos. Não raro, os jogadores encontram-se embaixo de uma tormenta e isso me serve tanto quanto a previsão do tempo. Sei que, talvez, se houver alguma generosidade, essa sorte de água chegará onde estou.
Duvido que essa tenha sido a inspiração de quem criou as bandeiras de Argentina e Uruguai, mas aquelas listras azuis em um fundo branco são como se fossem miragens em um dia claro demais, vapor tremulando baixo aquele sol tremendo, que faz a água de banhados e rios evaporar. Parece adequado pensar que sim, que são bandeiras em homenagem a umidade deste pedaço do sul, beirando o fim do mundo. Meu pai me contava, quando eu era pequena, da experiência de atravessar a Lagoa do Peixe de barco, com a água subindo em direção às nuvens, na forma de vapor. Meu pai que, como eu, aguarda ansioso os ares gelados que vêm do outro lado. “Tomara que chova três dias sem parar,” ouvia-o cantarolar, baixinho, quando não aguentava mais nossas agitações durante as férias de verão, nossas intempéries.
Foi em um verão, em uma praia mais ao norte, que conheci a origem das frentes frias, no entanto. Corria com baldes em busca de água para tornar a areia dura perto do guarda-sol mais maleável e trombei com crianças que falavam outro idioma, algo parecido com as coisas que minha avó paterna balbuciava para mim entre tangos na Rádio Guaíba nas tardes em que não ia à escola. Lembro do nome Carolina, e de perseguir Carolina, entre a carência e a curiosidade, pelo que pareceram meses. Lembro menos dela do que de seu nome, do que da voz de seu irmão, que acho que se chamava Fede e que parecia já — como toda criança argentina — soar como se fumasse umas três carteiras de Marlboro por dia. Na praia onde eu ia, uma guriazinha em um país improvável, os cardápios das lanchonetes eram em castelhano e aprendi uns vocábulos soltos que li da janela do carro. “Peluquería”, “alquiler”, “desayuno”. Já conhecia “abuelita”, “gallina”, “canasta”, “huevo”, “besitos”, ditas nas tardes entre mates e xícaras de café com leite com meus avós. A elas foram agregadas.
“Chancha”, me dizia meu pai, quando eu voltava da escola com o pescoço encardido da areia do pátio, o cabelo pingando e os joelhos escalavrados.
Em 1994, depois de passar por uns banhados que hoje conheço como a palma da minha mão, aprendi a dizer “parrillada completa”, “menta granizada”, “lapisera”, “videojuegos”, “calle”. E conheci Pablo, que me ensinou a jogar xadrez, embora eu já soubesse, e sua irmã que também se chamava Carolina. Lembro da mãe deles, professora como meus pais, me ensinar a adicionar o ¿ antes de perguntas, em uma lousa na cozinha em uma casa velha, acho que no Buceo. Insisti com meus velhos que queria conhecer Colonia del Sacramento. “Foi fundada em 1680”, disse aquela criança-enciclopédia, já meio historiadora. Meu pai me levou até à beira do Prata. “Lá tá Buenos Aires”, apontou. Semicerrei os olhos — era fevereiro — e, por cima e entre a água, tentei enxergar.
Tive uns anos de espanhol formal na escola, a partir daquele ano, espanhol da Espanha, o que achei muito estranho, os ll e y com outros sons. Se quero me sentir em casa, preciso que lluvia soe quase como chuva, aquela que espero que alivie o calor no verão. Lá e aqui.
Sempre tive no celular a previsão daqui ao lado para saber se essas chuvas vêm, quando e como. Se romperão a água pairando no ar com gotas mais rápidas e grossas, como aquele gol de contra-ataque de Julián Álvarez. Não acho estranho que por questões de destino, trabalhe em um lugar em que sintonizar o rádio significa muitas vezes tropeçar nesse outro idioma, o que chamam de rioplatense. Por vários motivos, ser essa criatura meio uma coisa meio outra, um pé lá, outro cá, meio cão, meio peixe, me convém; estar sempre à espreita do outro, que são mais de um, sempre, e não necessariamente estrangeiro. Pode ser uma casa de religião ou um bar de esquina no bairro em que cresci em Porto Alegre, e que não era território de gente como eu até pouquíssimo tempo atrás. O bairro ainda sobrevive em poucas casas, de madeira, que hoje fotografo, para mantê-lo ali.
Enxergar o outro, el otro, é se ver, reconhecer nossas próprias estranhezas, nos deslocarmos, até enxergar as coisas mais difíceis de perceber em nós mesmos. Heródoto e os Citas.
Nem todo gaúcho é como eu. Nem todo mundo tem essa preocupação com a chuva, essa consciência de estar entre a Mata Atlântica e a Patagônia e por esse motivo respirar água onde parece não haver. Reclamamos do mofo, do “tempo loco”, começamos as frases com bueno e nos emborrachamos, mas nem por isso deixamos de pertencer a isso que chamam Brasil. Ou talvez nem pensemos nisso.
Comecei esse texto porque fui provocada a pensar nos meus afetos, a nunca ter compreendido isso de torcer contra a Argentina na Copa do Mundo, apesar de saber que essa cortesia não me é retribuída na maior parte das vezes, enquanto brasilera. Há coisas que devo reconhecer, sobre meu lugar no Brasil ou em uma ideia de Brasil que, em que pese admitir, demorei a encontrar. Porque antes habitava um não-lugar. Talvez o mesmo não-lugar de pessoas de um lugar social semelhante ao meu e com uma cor de pele semelhante à minha, que as levam a dizer absurdos a respeito do próprio país ou do próprio continente e a querer deixá-los para trás. Procurar outras coisas nas quais investir seus interesses, por uma falta de identificação com o que dizem ser o nacional, por uma questão de classe, de geografia, de etnia, de sotaque. Não se enxergar naquelas coisas que muita gente diz que o representam, more than soccer and samba, porque há um abismo de desigualdade que nos separa uns dos outros. O mal de toda elite colonial, uma dupla consciência também, como quer Walter Mignolo.
No Twitter agora abunda uma tormenta de discussões raciais em torno do Brasil e da Argentina que seriam melhor compreendidas na chave da branquitude. Talvez se tivéssemos uma consciência maior de sermos também racializados e consequentemente isso afetar como nos relacionamos uns com os outros, não sairíamos por aí dizendo tantas pelotudeces.
Porque as pessoas são levadas muitas vezes a justificar simpatias, desconexões e renúncias com malabarismos argumentativos muitas vezes de má fé. Li um essa semana, que depois me bloqueou, dizer que não torceria para a seleção do Marrocos porque “futebol não é filantropia”. Como se os marroquinos fossem dignos de caridade e condescendência, um bando de pobres coitados, talvez até mesmo impossibilitados de ser opressores eles mesmos de outros, que olham com estranheza. Porque futebol se ganharia, segundo consta, “na bola”, como se o esporte não fosse atravessado por uma série de questões sociais, raciais, políticas e se reduzisse a essa essência, algo difusa, onde pode-se alocar qualquer coisa, mas que no fundo sabemos muito bem que coisas são.
Esses malabarismos retóricos pretendem todos apresentar, de modo geral, justificativas racionais para simpatias que são muitas vezes tudo menos. Torcer para um time europeu porque em tese “ele é bom” é menos racional do que eu dizer que sempre torço para a Argentina ou para o Uruguai por causa das chuvas, umas amizades de infância e por ter um zumbido em castelhano titilando logo ali desde que me tornei consciente da linguagem, me dizendo para parar de besteira e me apropriar deste idioma, entender este lugar.
A questão é que mesmo os afetos, vejam bem, são políticos. Somos atravessados por política, porque ela diz respeito a nosso lugar no mundo, remete a um espaço específico: a cidade, em oposição à natureza. Ignorar isso é ingênuo e ao mesmo tempo perigoso, porque pressupõe que posições possam ser adotadas independentemente de reconhecermos de onde falamos. Quando isso toca coisas como o futebol, não deveria ser origem de maiores dramas. A princípio não há nada de errado em sentir afetos, muitas vezes gratuitos. O problema é querer recalcá-los e dotá-los de um sentido que eles não possuem, procurar revisionismos onde não existem, um “até tenho amigos”, recusar-se a olhar-se no espelho. “Futebol é sobre bola”, dizem. Não finjamos que por trás dessa afirmação não há uma série de outros conceitos que operam dentro de uma lógica especialmente designada a discernir um outro, um menos. Por sorte, “la pelota no se mancha”, apesar de tudo.
Nada precisa ser exatamente lógico, racional, qué sé yo, como diz esse comercial da Schneider, desde que não desmereça outras subjetividades, que as anule, que as trate com desprezo, como filantropia.
Ando assumindo ultimamente meus afetos, com alguns de seus boletos, inclusive na escrita e vendo de onde saem as vozes através das quais falo. Tenho me sentido mais livre, mais bruxa — ainda que no las crea — e principalmente compreendendo meu lugar no mundo. Essa semana fez um calor brutal, até que vieram las lluvias de allá. No dia em que refrescou, a Argentina fez uma chuva só sua, alçou uma miragem de listras azuis, um fundo branco, no sol. E vi vídeos de muita gente feliz, como ficariam nos cantos mais precários do nosso país, gente invisível, do nada ali, sendo enxergada e se enxergando, caso fôssemos nós.
Semicerrei os olhos, caminhei no pampa, e coloquei um casaco de moletom, una camperita. Contente por eles, por nós.