Identitários
Um texto sobre como a política está mais identitária do que nunca e não do jeito que dizem.
Hoje, enquanto a névoa do sono e do deslocamento na madrugada baixavam dando lugar à onda de calor que se aproxima, fui ao supermercado porque não tinha nada em casa para almoçar. Esperava me atenderem no balcão da padaria, quando vi duas meninas se abraçando no setor de produtos de higiene, um casal como qualquer outro, uma dando um beijo na nuca da outra, como meu namorado faz ao passar por mim escrevendo ou fazendo sudoku na bancada da cozinha dele, de cabelo preso. Confesso para vocês que, velha que sou, ainda me surpreendo quando casais homoafetivos demonstram afeto cotidianamente em público e me peguei sorrindo.
Isso não aconteceria há vinte anos nesse supermercado; há um casal de lésbicas mortas numa explosão de um shopping numa novela das oito do final dos anos 90 para sublinhar meu ponto. Sequer nos campus universitários que eu frequentava as pessoas gays ou bi que eu conhecia ousavam demonstrar afeto quando juntos. Essas pessoas, algumas delas amigos e amigas meus e minhas, podem falar de suas experiências muito melhor do que eu, que na época delirava num pós-feminismo francamente burro e normalizava essas questões. Esse texto não é sobre isso diretamente, mas sim como essas mudanças na paisagem cotidiana, nos rostos e nos afetos daqueles que nos cercam, intensificaram a defesa de algo que chamamos identitarismo. Só que não esse identitarismo que muitas vezes é apontado como problema no campo da esquerda, responsável pela ascensão das extremas direitas.
Falo desse identitarismo que essa semana culminou com outra explosão, real e um tanto mais trágica.
Há alguns meses (que parece que foram milênios atrás),
me interpelou no whatsapp para ajudá-lo a inventar um personagem fictício que serviria de exemplo para explicar a guinada conservadora nos final dos anos 60 nos Estados Unidos, a chamada silent majority do Richard Nixon. Inventamos Terry, uma aeromoça cujos pais estariam muito preocupados que ela decidiu se mudar para San Francisco e viver com um cara chamado Charlie Guitar ou algo assim (o texto está aqui). Há algumas semanas, também ouvi uma série do podcast The Rest is History sobre o fascismo na Grã-Bretanha, o qual entre outras coisas, usava a imagem das flappers como as da foto acima — mulheres de cabelo e vestido curtos que depois da Primeira Guerra Mundial se tornaram ícones dos anos 1920 — como sendo uma ameaça ao Império. As flappers e as sufragistas seriam as culpadas, entre outras coisas, de transformar o Reino Unido num país decadente e cheio de lésbicas depois da Grande Guerra. Nada muito diferente do que a mesma Inglaterra propagava a respeito das mulheres que aderiram ao projeto da Revolução Francesa no final do século XVIII, entre elas Mary Wollstonecraft (a mãe da Mary Shelley, para quem nunca ouviu falar).Toda vez que, no mundo ocidental, algo ameaça o mundo ordenado das elites brancas e supostamente bem comportadas, evidenciando corpos e afetos fora de lugar, a resposta em prol da manutenção da identidade e o lugar, principalmente dos homens, é visceral. Chegam ao ponto de deitar em frente ao STF vestidos de coringa e explodir a própria cabeça com fogos de artifício.
Alguns vão dizer que esse cara estava louco, que era um “extremista”, mas eu sustento que não: estava defendendo seu mundo e sua identidade. Batom, para ele, afinal de contas, serve para deixar as mulheres e seus corpos bonitos e não para cometer atos políticos.
(Não me causa espanto que, entre seus últimos atos, esteve o de passar um corretivo numa “companheira” de movimento político)
E veja bem, nem sempre esses corpos estarem diante de nós ou nós mesmos os ocuparmos é o suficiente, inicialmente, para perturbar essa e outras ordens. Porque é somente quando temos a realidade que não pertencemos a ela esfregada na nossa cara é que nos damos conta de que somos nem que seja um pouco diferentes daquilo que se supõe a norma. Quando falei antes de meu pós-feminismo burro era porque realmente houve uma época em que eu pensava que o feminismo era uma discussão superada, afinal quase todos meus amigos eram homens, meus professores me respeitavam e me tratavam como igual. Podem rir.
Isso explica por que há pessoas que visivelmente não pertencem na proverbial sala de jantar que aderem às opiniões expressas nela. Como diria o médico e também músico Jorge Drexler, la vida es más compleja de lo que parece. Pensar tudo em termos de branquitude e de masculinidade — que sou mais ou menos branca ou mais ou menos mulher a depender de onde estou — tem sido essencial para entender toda essa bagunça que aparentamos estar vivendo e que é, na verdade, apenas um reboot, um espectro de algo que já vimos antes.
Na semana passada, no dia em que Donald Trump foi anunciado vencedor das eleições nos Estados Unidos, enquanto eu falava sobre como o que estamos vivendo é uma crise moral das elites — financeira, política e intelectual — como as que precederam outros processos históricos, um aluno me disse que queria ter a tranquilidade que eu e outro colegas esboçamos quando falamos a respeito dessas coisas.
Pensei em mim, nas minhas alunas e em meus alunes não bináries, que mudaram sensivelmente a paisagem cotidiana ao nosso redor e alarmam homens que andam por aí, carregando explosivos. No quão frágil tudo é.
“Nah”, eu disse, tranquilamente, “estou apavorada.”