Uma vez vi um acidente feio entre uma moto e um carro. Era 31 de dezembro de tarde e eu vinha caminhando por uma rua perto de onde morava então, perto de onde moro agora, no silêncio da Porto Alegre vazia típica desses festejos. Me equilibrava em umas sandálias de plataforma, próprias do início dos 2000, vestindo uma saia jeans e uma camisetinha. Era pele e osso naqueles anos, as pernas muito finas de ansiedade, o cabelo liso.
O parabrisa do carro, que foi parar contra o tronco de um ipê ainda pequeno e inocente, se descolou em fragmentos da moldura como se fosse um plástico amassado. O motoboy se jogou na calçada, a metros da moto com a caixa caída semiaberta. Lembro de falar no meu celular — um daqueles Nokias — com o chefe dele, que me perguntou se ele tinha condições de voltar a trabalhar. Eu já era uma estudante de História e muy de esquerda, então rosnei que havíamos, eu e os outros passantes, chamado uma SAMU. Minha responsabilidade naquele imbróglio era ficar gritando para o empregado dele não se mexer, não se levantar, por medo de que algo acontecesse com sua coluna vertebral. Depois de dizer que não podia crer na falta de sensibilidade do patrão, desliguei sem esperar resposta, as mãos tremendo.
Quando tudo passou, quando só sobrou moto, carro e fiscal da EPTC, sentei na calçada e liguei pro meu pai, com a cara transparente, a visão turva. Tinha visto as testas das crianças do carro vertendo sangue, os joelhos e mãos esfolados do motoboy. Mas vi também o próprio motivo de eu estar fortuitamente ali, muito claramente, e minhas pernas não me obedeceram mais. Um ano depois, quem estaria andando de ambulância depois de bater o carro seria eu, por esse mesmo motivo.
O motivo esse, de eu estar ali naquela rua, caminhando até em casa, era o fato de que o cara com quem eu me relacionava na época não me largava na porta do meu edifício. Sob o argumento de que perderia tempo até onde quer que estivesse indo, quando me dava caronas ele me largava num ponto no meio do caminho, inclusive impossível de se parar decentemente. Não tanto uma carona, portanto, como alguém me despejando na calçada. E não era algo pontual. Ele sempre fazia isso e logo no início do nosso relacionamento uma vez reclamou que eu morava em uma elevada, o que fazia com que ele gastasse mais gasolina.
“Tu pode descer em ponto morto”, foi o que respondi então.
Ao longo de uns três anos, a única coisa que esse sujeito não fez comigo foi me bater. Isso fiz eu uma vez: uma palmada no meio da cara dele numa calçada da Cidade Baixa, porque eu estava sendo solicitada pela minha ginecologista a fazer um exame de clamídia. Existem formas e formas de se abusar de alguém, de reduzir a nada a subjetividade de uma pessoa, um caquinho no parabrisa de um carro, mas quem se encarregou de me machucar fisicamente fui eu. Ele só dizia que eu era magra demais, ficava feia quando chorava, tinha que usar sempre maquiagem porque senão ficava com cara de criança. Não pegava na minha mão, não demonstrava carinho em público.
Minhas costelas do lado direito onde passava o cinto de segurança do motorista ainda doem, porque algo não cicatrizou bem. Aceitei ser alguém por quem não vale a pena fazer umas duas curvas a mais, pegar uma outra avenida, e fiz muita coisa errada, machuquei muita gente que amo, por causa disso.
“Tell me I’m worth all the miles that you put on your car”, diz uma canção da qual gosto muito.
Eu, aparentemente, não sou isso.
Fazer quarenta anos significa pensar que metade da vida se passou e refletir sobre quem nos tornamos. Às vezes posso cancherear minha autossuficiência, meu desapego, meu senso prático, mas no escuro, sou ainda aquela mulher cujas pernas não funcionavam depois de assistir um carro bater numa árvore, com um celular na mão. Parece que sempre estou com um celular na mão, e essa semana disse que tenho fantasiado em atirá-lo da janela de um ônibus quando sair de férias.
Me tornei também alguém que tem vergonha de explicar como vai parar em certas situações, porque sabe que vai ser responsabilizada, como se sentem muitas de nós, em circunstâncias piores ainda, quando têm de denunciar agressores.
As mulheres em geral sempre são responsáveis por varrer a bagunça da cozinha, da sala, do que seja, e daquela vez não foi exceção. Naquele caso, apesar desse sujeito achar que nada teve que ver com isso, acumulei consequências diversas. Digo isso porque houve quem estivesse ao lado assistindo tudo acontecer — o carro perder o controle, o sangue no parabrisa, a explosão e eu saindo dali com cheiro de fuligem — e que agiu e ainda age como se nada tivesse acontecido. Saí me arrastando daqueles escombros, com aquela pessoa ainda pegada aos meus cabelos, me mandando emails, me mandando mensagens, dizendo que sempre teve carinho por mim, que um livro que entreguei de presente num Natal e que ele atirou no lixo em desprezo e depois teve a pachorra de comprar outro exemplar o marcou profundamente.
Jamais entendi como alguém pode ter aprendido a tratar uma mulher assim e aí me lembro de como é feito o mundo.
Porque vítima, porque mulher, porque me odiava, voltei a fazer contato algumas vezes com essa pessoa — acho que avisei que o primo dele tinha sido chamado numa das tantas chamadas extras do vestibular da UFRGS. Isso me foi atirado na cara uma vez como sinal de que por mim o que eu tinha vivido não era nada, que estava tudo bem. Suponho que isso e outras coisas pareceram, para muita gente, coisa normal de algo que ele dizia que não éramos — um casal — que se separa.
Para ser justa, naqueles anos, violência de gênero era algo circunscrito a aparecer numa delegacia com um olho roxo e olhe lá.
Let bygones be bygones, no fim foi, e fiquei com uma mão fantasma, fria, indelével, na nuca, um desprezo visceral por Pink Floyd, e sempre me escapando, inconscientemente me boicotando e esperando o pior acontecer em minhas relações. Uma vez uma pessoa com quem me envolvi me deu para vestir uma camiseta do Dream Theater para dormir. Me recusei a vestir aquilo, irracionalmente, sentindo aquele gosto de ferro na boca que precede um ataque de pânico e não só porque Dream Theater é, convenhamos, uma banda ridícula.
Há anos ouço minha terapeuta repetir que não sou mais aquela pessoa, que não tenho mais vinte e três anos, por mais que eu mesma muitas vezes não acredite.
Não escrevo isso para “expor” ninguém, para me colocar na posição de coitada e angariar simpatia, mas sim para assumir quem sou, as coisas às quais sinto que sobrevivi. Tem mulheres e meninas que me leem e sempre sinto que não posso deixar de ser egoísta com minhas palavras, ao mesmo tempo que sei que ninguém pode tirá-las de mim.
Sobreviver a uma relação abusiva é um processo muito muito lento. E como a História em si, aquela sobre a qual falo semanalmente para gente que tem a idade que eu tinha enquanto atravessava aquele horror, livrar-se de algo assim não é linear como querem muitos homens. Porque o passado emerge para nós que não nos reconhecemos nesse mesmo tempo, nesse mesmo andar, reconfigurado de tantas formas, que hoje se tornou comum o termo “gatilho”.
Uma metáfora violenta para violências, de todas as ordens.
Um parabrisa se desfazendo, o som da moto rodando no silêncio do chão da rua, meus joelhos travados e a boca seca.
O celular na mão.
Fico me repetindo, mas obrigada Renata. A tua escrita me chega como bálsamo. Um forte abraço.
que texto excelente. obrigada por ele.