Moro num lugar em que é comum termos de colocar casacos quando entramos em casa e não ao sair. O ar carrega água e ela demora a se dissipar com o sol, se torna ainda mais volumosa quando esquenta subitamente. De noite, sinto esse ar molhado e frio se esgueirando em qualquer fresta que minhas roupas oferecem, juntando nas calçadas, atravessando os tecidos e puxando meus pés, principalmente quando já estou deitada. Sei que isso é próprio de quem, pela medicina indiana, tem como dosha preponderante o vata: ar e éter.
Sou mesmo meio avoada e talvez por isso meus pés estejam sempre muito gelados.
Onde trabalho, isso piora. Em um dos prédios, o principal, há goteiras mesmo em dias de céu claro e às vezes dou aula com as pernas cruzadas, com os pés enfiados debaixo das coxas numa tentativa de tocar menos o chão frio.
Já escrevi aqui sobre como passar frio cansa, mas hoje quero falar sobre outro tipo de frio: o da salas de aula vazias na universidade onde leciono, ao contrário do teto sem reparos que se encontra com uma colônia de fungos aninhados, acavalados um sobre os outros como que esperando ávidos pelo listão do vestibular. É o teto por onde passam as goteiras. Se quando ingressei como docente lá o maior problema era a brutal evasão, hoje ela também está somada à falta de procura, inversamente proporcional às infiltrações no telhado. As turmas ingressantes são pequenas, nos deixando em salas de aula onde nossas vozes ecoam entre os silêncios, ricocheteando aulas preparadas por horas e horas para uns poucos.
Isso não é exclusividade nossa e quem se depara todos os dias com os bombardeios de propagandas prometendo diplomas rápidos e à distância e não pensa no que isso significa, não se dá conta de que o apocalipse não é apenas climático. Seja ao lado do prédio onde vive minha irmã, em Guaíba, seja em Fernando del Valle de Catamarca, ao lado de onde me hospedei, os polos EaD de universidades privadas, exigindo pouca infra-estrutura, me parecem se fazer ubíquos. Esse fim que aparentemente estamos vivendo é, portanto, também o das instituições tradicionais de ensino, da autoridade vinculada à figura do professor e das formas presenciais de troca de informação e afeto no espaço não só escolar, mas também universitário. Quando estava na graduação, não aprendia apenas tentando manter meus olhos abertos diante de meus professores, mas também com os bilhetes passados por minhas colegas, discretamente, de uma a outra (não tinha whatsapp). Aprendi dormindo na biblioteca, assistindo as abelhas tomarem conta de nossas canecas de café no bar em dias de primavera. Aprendi a me machucar e a criar a imagem de alguém talvez meio fria e distante.
Li um conto essa semana de Mariana Enríquez, chamado Verde rojo anaranjado, da coletânea Las cosas que perdimos en el fuego, em que a protagonista é uma mulher cujo ex-namorado entra em depressão e se tranca num quarto. Marco passa a se comunicar com ela apenas pela internet, e as cores do título se remetem a seus status online. Como ela, eu também frequentava fóruns de internet de meninas esquisitas, também recebi pelo correio presentes de amigas europeias que nunca vi e que desde que saí em definitivo do Facebook se tornaram tão somente abstrações do passado. E como ela, sei que essas pessoas não são como as amigas que tive no mundo de verdade, em que pese terem parecido que sim na época. Dois anos enfiada dentro de casa, me relacionando com alunos e amigos apenas pela internet me deixaram mais como Marco do que como sua ex. Uma pessoa semi-morta, cujo estatuto concreto teve de ser devolvido a mim de outras formas, com outros amigos, algumas viagens, minhas panelas e meus textos.
Essa semana, na yoga, disse que não consigo fazer as aulas online que ficaram gravadas da pandemia porque elas me levam para um lugar muito ruim, como se de repente eu fosse ter uma crise de pânico ou uma súbita vontade de vomitar. É como tomar chá de camomila, que me lembra sempre de estar enjoada. Um colega me olhou e disse “não te fez bem então”, referindo-se ao isolamento naquele período, e para explicar disse que me sentia num submarino, que tudo era distorcido, que mesmo as pessoas que conheci virtualmente e depois de carne e osso me pareciam suspeitas e estranhas.
Nós não saímos da pandemia melhores e o “remoto”, “virtual” e o que seja, se veio para ficar, cobra para alguns — para mim — um preço altíssimo. Tem gente que prefere trabalhar assim, que sonha em ser “nômade digital”, mas eu não acho que essa seja a saída para a minha profissão.
Aqueles que tomam a construção de espaços virtuais de convivência, relacionamentos afetivos, trabalho e especulação financeira como um dado da natureza ignoram que o desenvolvimento tecnológico só é colocado nesses termos — “desenvolvimento tecnológico” — porque um bando de magrão escreveu uns livros no século XVIII que propunha esse ordenamento do tempo, linear, em direção a algo. Não é necessariamente progresso, não é necessariamente avanço e sei que tampouco é intrinsecamente um sinal do fim da humanidade, como querem todos os romances distópicos. É algo com o qual temos de lidar, que tem suas consequências, dessa vez de ordem epistemológica mais profunda do que o advento da calculadora. Entre os jovens, vem causando uma epidemia de depressão e suicídio justamente pela frieza de se poder deixar uma conversa de lado sem despedida, algo quase impossível no mundo tangível, táctil, de um pátio de colégio ou cantina universitária.
No que me toca, chama-se “mal estar docente”, o covid longo do ensino.
Meus pés gelados, a sala vazia, minha voz ecoando por um corredor.
gosto muito de ler teus textos, Renata. esse me pegou <3
Gostei dos teus textos desde o primeiro que li, mas este aqui está primoroso.
Depois de 40 anos morando no Rio Grande do Sul, eu me mudei pra outro continente. Faz quase três anos mas entendi imediatamente quando tu descreveu o frio, o ar e a umidade.
Obrigado por me fazer sentir mais perto de casa.