(Uma preguiça gigante no Museo de Ciencias Naturales Bernardino Rivadavia, de Buenos Aires, mais ou menos como eu, esperando o semestre começar)
Nasci junto com um doutorado, que foi emendado em outro doutorado. Nasci, portanto, achando que necessariamente ia ter de fazer um, quando crescesse. Para frustrar todos os planos daqueles que achavam que eu ia me rebelar contra o mandado familiar — com minhas roupas pretas, lápis de olho sempre muito grosso, e raiva — fui lá e fiz. Muito porque meus pais, apesar de não escapar da angústia causada pelos doutorados, sempre foram pessoas felizes com seu trabalho, isso de ensinar coisas que a muitos pareciam pitorescas. Meu pai sempre dizia que não olhava o relógio esperando a hora de ir embora. Muito pelo contrário: por muito tempo ia inclusive aos sábados para a universidade. Just because.
Fiz meu doutorado, no entanto, em outra década, em outro século, sem filhas pequena brincando com estiletes e pulando pela casa. Condições supostamente melhores. E mesmo assim, lembro de me sentar numa mureta da praça São Salvador, entre o Flamengo e Laranjeiras, no dia antes da defesa de minha tese e chorar não de alívio ou alegria, mas com um vazio imenso, dizendo “tu não tá entendendo, eu meio que nasci esperando esse dia” para o menino que tinha namorado pouco tempo antes.
Na noite seguinte, quando tudo tinha terminado e o Grêmio tinha vendido o Victor ao Atlético Mineiro, meu pai disse em voz alta no quarto de hotel, um início de pergunta.
“Ô, doutora…”
E quando eu respondi, “quê?”
Ele só riu e disse, “queria saber se tu ia te dar conta que era contigo”.
Pronto.
Esses dias comentei com minha psicóloga, que me atende desde logo depois que terminei o doutorado, sobre como cheguei no consultório dela. “Deprimida, perdida…”, começou e só faltou terminar com “xoxa, capenga, manca, anêmica, frágil e inconsistente”. Ainda hoje desmereço minha capacidade como historiadora e pesquisadora por causa daqueles quatro anos, que não foram fáceis. Para mim parecia que me destruir um pouquinho fazia parte do processo, mas não tanto.
Se não me destruísse, não seria trabalho. Weber intensifies.
Existe certo espectro pairando sobre o mundo acadêmico esse ano, o espectro da greve docente nas federais. E muitos vão dizer que é um descalabro, mas de fato estamos exaustos, com salários defasados em relação à inflação, principalmente os que têm filhos, pais idosos, plano de saúde a pagar. A pandemia nos deixou dois anos desnorteados, muitos tendo de se adaptar a esquemas de ensino remoto (EAD é outra coisa) aos trancos e barrancos. Eu, assim como muitos outros, adoeci. Além disso, os prédios estão novamente desmoronando, as calhas de muitos deles entupidas, tetos desabando. O auxílio estudantil, escasso. Nada mudou muito com o novo governo, confesso, não só em termos de orçamento mas também no que diz respeito às reformas dos currículos das licenciaturas, atiradas ao mato do Novo Ensino Médio e dos grupos empresariais que as conceberam.
Existem, no entanto, alguns probleminhas aí, para nos organizarmos como categoria, entre elas uma defasagem imensa entre o que ganhamos e o que a maioria das pessoas do país ganha; entre o tipo de função que desempenhamos e aquelas desempenhadas por outros trabalhadores, inclusive outros professores; entre nossas condições materiais de vida e nossas condições materiais de trabalho; e ainda um contraste muitas vezes entre nossas condições materiais de vida e as dos nossos alunos, cujo número cada vez mais diminui.
Quem quer investir quatro ou cinco anos de sua vida em uma faculdade presencial depois de passar pelo trauma de ter qualquer planejamento abortado por uma pandemia da qual ninguém mais fala? Quem quer investir quatro ou cinco anos de sua vida em uma faculdade quando pode ter um emprego qualquer e ampliar sua renda com apostas, com cryptos, com o que quer que seja? Basta seguir um canal de YouTube, um canal de Telegram.
Confesso que entendo, mas tem algo mais aí.
A extrema-direita soube aproveitar muito bem, globalmente, o desprezo que existe desde o século XVIII pela figura do erudito — um bon vivant preocupado com minúcias, com coisas inúteis, chegando à beira da disfunção sexual (sério). Tanto no Brasil quanto na Argentina, a direita foi à caça dos títulos de papers e trabalhos acadêmicos que aparentemente versam sobre coisas estapafúrdias para desqualificar o que é feito nas universidades com dinheiro público. É muito difícil e cansativo ter de ficar explicando o quanto a pesquisa científica parte de algo aparentemente inócuo para pensar aspectos mais amplos do mundo que habitamos e das pessoas com as quais convivemos. Pode ser a bunda do Batman, pode ser uma espécie de besouro.
Essa desconfiança do uso do dinheiro público para financiar arte, ciência e o que fica no meio do caminho entre as duas — como a história — foi uma sementinha plantada por aquilo que se convencionou chamar neoliberalismo. Tanto que sequer é novidade: Aaron Sorkin, em seu delírio megalomaníaco mais ousado, The West Wing, incluiu um episódio que trata dos dilemas ao redor do orçamento do National Endowment of the Arts, o sistema de financiamento público de obras artísticas estadounidense. Essa ficção liberal brasileira de que nos Estados Unidos o Estado não financia nada é uma balela e as consequências desses discursos também naquele país já o transformou em uma república protobananeira, com um mercado acadêmico feroz, saturado e um laboral pior ainda.
Estou me preparando para mais um ano letivo começar com a plena consciência de que não sei quando e como ele vai terminar, pelas condições atuais do ensino superior público no Brasil — e quando digo atuais, me refiro a quase dez anos de desfinanciamento, descaso e da erosão contínua da importância dessa instituição como lugar de capital simbólico e de produção de saber. Num mundo em que cada vez mais gente faz “terapia do contracheque”, até mesmo aqueles que têm a sorte, como eu, de fazerem o que gostam, ainda não sinto que posso reclamar. Mas não estou contente, não estou feliz, não estou empolgada.
Se dissesse que estou, estaria mentindo.
Deixo duas recomendações para essa semana, os dois do lugar do qual faz um tempinho do qual não volto de todo, porque é onde está a gata Vera e nossos afetos em comum:
Esse documento, escrito por historiadores e cientistas sociais argentinos a respeito da ameaça que apresenta Milei à história, instituições e sociedade argentinas. O texto pode ser acessado em português aqui.
Essa crônica da escritora argentina Tamara Tannenbaum a respeito de falar de dinheiro, coisa sobre a qual nós brasileiros também já perdemos os pruridos. Em um mundo que cada vez mais gente diz que para ser feliz basta que alguém lhe faça um pix de 10 mil reais, dá o que pensar.



Esta noite eu sonhei que conversava com um dos meus mais queridos mentores e que, ao ser perguntada pelo que eu "andava fazendo (pesquisando, estudando)", eu lhe dizia "Estou dando umas aulas como substituta. Mas queria mesmo era poder viver assistindo filmes no cinema e lendo as coisas que eu gosto. Honestamente, não acredito mais na missão acadêmica." Consegui dizer isso sem vergonha nenhuma porque era sonho. Mas agora, lendo teu texto, me pergunto o quanto é ainda o burnout falando. E em quantos de nós sobrevivem não apesar de, mas por causa do apego ao cansaço com o qual aprendemos primeiro a conviver...
Ano letivo aqui no Município de São Paulo, começou em 05/02 e também não está fácil. Prefeitura ofereceu 2,16% de reajuste Salarial e declarou que temos que ter "bom senso".