Ás de copas
Quando brincava de Barbies ou de bonecas, tinha sempre muitos filhos. Passava horas armando os quartos de cada um, a casa imensa num canto do chão do quarto, sem paredes e com uma mistura de brinquedos de todos os gêneros, de móveis de madeira, aos da Moranguinho. Quando eu ia dormir, tinha também um cachorro de pelúcia que, imitando um cachorro de verdade, deitava aos meus pés na cama, como imaginava que o cachorro que eu não podia ter no apartamento em que morávamos dormiria.
Tenho um ímpeto por querer cuidar e me sinto culpada se não consigo, apesar de nunca ter cuidado muito dos meus brinquedos. O cachorro esse passou por inúmeras costuras e minhas poucas Barbies, além de muitos filhos, tinham sempre a cabeça meio enterrada no pescoço, porque elas invariavelmente acabavam sendo puxadas e separadas do corpo em algum momento, fosse por um penteado ou por distração.
Que imagem para alguém que passa o tempo todo achando que precisa colocar a cabeça no lugar.
E não, não vi o filme da Barbie ainda, não tive tempo.
As meninas com quem eu brincava de Barbie, que talvez não se preocupassem muito com o estado de saúde imaginário e a alimentação invisível de seus filhos inventados, hoje têm filhos de verdade. São minha irmã e minha prima, e em algum momento, conversando as três, concordamos que eu, quiçá, fosse a mais maternal de todas nós. Eu era a que tinha as fantasias, os nomes escolhidos, a vida mais ou menos planejada.
Foi difícil chegarem à conclusão de que Tomás seria Tomás e Betina seria Betina, enquanto eu, que agora não quero ter filhos, quase sempre tinha minhas listas, o cast de personagens de uma peça teatral.
Cast também pode ser referir a gesso em inglês, aqueles de imobilização, porque originalmente quer dizer, entre muitas coisas, molde ou matiz. Pois bem, depois de adulta descobri que nada na vida pode ser engessado, por mais que tentamos colocá-las num molde.
Um dia me dei conta de que isso de ter filhos para mim era tão somente exercício de imaginação e um tanto de conformidade com os moldes apresentados a mim desde pequena. Quando contei às minhas amigas que minha irmã estava grávida — e a maioria das minhas amigas não tem e não quer ter filhos — muitas me perguntaram se era “gravidez na adolescência” ou intencional. Tomás é muito intencional, da mesma forma que meus movimentos em direção a não ter relacionamentos estáveis, a ter sempre uma desculpinha, também são fruto de uma intenção.
E também resultado de que na verdade tenho um sincero, sinceríssimo, pavor de nunca mais poder ficar sozinha na vida e de não poder mais me distrair, pensando em coisas inventadas. Me distrair e só perceber algum tempo depois que a lata de cerveja Miller comprada num chino para justificar uma retirada de efectivo no caixa, e que estava na minha mochila, se perfurou e foi soltando seu conteúdo na parte de trás das minhas pernas enquanto eu cantarolava El diablo de tu corazón a caminho do Museo Moderno.
Em pânico, parei ao lado da fila de turistas que esperavam para tirar foto com a escultura da Mafalda em San Telmo para jogar fora a lata, que vazava, vazava, vazava, pela Calle Defensa, e enfiar meu casaco de moletom no fundo da mochila para absorver tudo o que estava molhado. Depois caminhei até um café para ver se meu computador ainda funcionava.
O mais engraçado de quando conto essa história é de que a primeira coisa que as pessoas comentam é eu ter ficado fedendo a cerveja andando por Buenos Aires, quando isso foi a última coisa que passou pela minha cabeça naquele momento. Minha preocupação era menos da ordem do odor e da estética, do que com a lata de cerveja em si, com o computador, com a mochila que eu tinha recém lavado e que agora estava molhada.
A abnegação de uma mãe. Só que não.
Minha irmã não é minha irmã mais velha. Tive um dia de tomar nas mãos a ideia de que minha irmãzinha muito provavelmente casaria e teria filhos antes de mim e olhar bem o que isso significava para esse repositório de expectativas que é ser a primogênita de uma família que não conta com essa entidade, a tia solteira com o útero vazio.
O fato é que agora, o bebê para quem eu lia livros do Asterix (fazendo vozes), cujas fraldas vi sendo trocadas, e de quem vinham me avisar nos recreios da escola se tinha caído ou vomitado (uma vez com uma descrição pormenorizada do que foi regurgitado), teve ela mesma um nenê. Parecido com ela, ainda por cima.
Me soquei em minha cozinha a fazer molho bolonhesa e creme de moranga para deixar congelados, pensando em relatos de mães cansadas, pais aturdidos, sono insuficiente e que eu, em meus trânsitos todos, com isso ao menos poderia contribuir para aliviar esses dias que parecem tantos em um só. Fui ver se a carne que eu tinha misturado no processador que ganhei de Natal estava já toda moída e cortei meu polegar esquerdo na lâmina, uma tampa. Não doía, mas não parava por nada de sangrar, talvez tudo que não sangrei ou chorei quando vi Tomás pela primeira vez ou num quarto, na Catamarca dias antes, quando me deparei com coisas sobre minha própria vida agora, sobre a lata de cerveja Miller. E o resto.
Terminei a bolonhesa de paleta de porco e carne de gado com o dedo enrolado em papel toalha.
Mandei uma foto para meu cunhado, à guisa de humor: “Ninguém pode dizer que não dei sangue por meu sobrinho”.
Estou encontrando até agora manchas vermelhas no banheiro, onde, desesperada, eu tentava abrir embalagens de Band-Aid, que úmidos entre o sangue e minha saliva para entancá-lo, não grudavam na minha pele, diferente de outras coisas se pegaram a mim nos últimos meses.
E tudo vazava, vazava, vazava, como a lata de cerveja em San Telmo.
Quizás menos o filme da Barbie do que um filme italiano. Quizás.