(O forte de Copacabana na noite de 31 de março de 1964, fotografado por Evandro Teixeira — mais sobre a foto aqui)
Há vinte anos eu tinha vinte anos e o golpe militar de 1964 cumpria seus quarenta. Eu era, também, uma estudante de História da UFRGS, amamentada em filmes do Costa-Gavras e do Ken Loach, tímida mas falastrona quando me convinha. Naquele ano, porque uma amiga foi morar por seis meses na Argentina, reinventei meu primeiro blog, para encorajá-la a escrever a respeito de suas experiências, dividi-lo comigo. Por causa de seu destino, chamei a página de “Algo com tango, café e calcinhas” porque foi essa a consigna que ela me deu para pensar num nome.
Ser jovem na internet jovem.
Naquele ano, ainda fomos a um Fórum Social Mundial marchar para que se abrissem os arquivos da ditadura. O presidente do Brasil era o mesmo de agora e frustrava nossas expectativas a respeito daquele passado tão horrível que só aparecia em preto e branco nas lembranças dos meus pais e nas reportagens especiais dos jornais e semanários que eles assinavam. A rigor, pensava eu, tínhamos sido todos vítimas daquilo, tinham nos roubado a chance de talvez ser um país decente, e os mais velhos começavam a me parecer covarde em confrontar seus fantasmas. Ao menos era o que sentia desde o colégio, quando depois de uma aula tive de consolar minha então melhor amiga que, tristíssima, lamentava as atitudes de boa parte da população brasileira nos primeiros meses de 1964.
Os professores de história às vezes não têm ideia do efeito que produzem sobre seus alunos, sobre minha amiga Ana e o olhar perdido procurando no meu uma resposta, suponho porque eu sempre estava com ele entre as páginas de algum outro livro.
No final da graduação, entreguei como monografia para me fazer bacharel em História um trabalhinho sobre os romances do Antonio Callado publicados entre 1967 e 1981. Fui levada pela sobrecarga de eventos a respeito da efeméride que se esparramou sobre nós aquele ano. Lembro de peregrinar auditórios, conhecer mulheres que foram torturadas, conhecer familiares de desaparecidos, e larguei por um tempo o inglês, os romances publicados em folhetins e os indígenas inspirados nos de Chateaubriand. Não sei se outra geração de formandos que pegou essa data redonda fez tanta questão assim de escarafunchar esse período. Dois anos depois, voltei ao século XIX, a uns romances inóspitos que não chamavam a atenção de ninguém e só fui o deixar recentemente.
Como historiadora, dia 31 de março é sempre um dia pesado para mim, como é o dia 8 que lhe antecede. Mesmo que eu não seja parente de vítimas do regime, me sinto convocada a sentir, por conta de minha profissão. É o tipo de assunto que quando falam a respeito, sinto minhas mãos crispadas, meu maxilar endurecer. Talvez a única pessoa próxima a mim capaz de entender meu desconforto seria meu avô militar, que se reformou com uma patente baixa em 1963 depois de passar pelo extenuante episódio da Legalidade. Talvez ele conseguisse entender porque me remexo diante de generalizações, diante de justificativas, diante daqueles que não entendem que uma coisa era o Brasil em 1964 e outra era em 2004, em 2014 e ainda outro animal completamente diferente é o de 2024. E que esse último deve muito ao que foi dito e principalmente ao que não é dito a respeito daquele primeiro.
Faz uns dias terminei de ver, bastante atrasada, a série Mare of Easttown, em que Kate Winslet faz uma policial numa cidade miserável na Pennsylvania, de aproximadamente uns doze habitantes, todos parentes de alguma forma. Lá pelo final da série, uma psicóloga diz a Mare que ela se atira em seus casos, nos assassinatos que precisa desvendar, porque quer retardar o próprio luto pelo filho que se suicidou. Acho que boa parte da população brasileira que simpatiza com o campo da esquerda, pelo menos a informada de classe média, faz isso de alguma forma com relação à ditadura. Prefere se comover com as Madres de Plaza de Mayo, com Victor Jara, com José Mujica, do que reconhecer aqueles entre nós que perderam alguma coisa nos vinte anos de ditadura no Brasil, e o pior, aqueles que continuam perdendo através dos mesmos métodos de tortura e desaparição, só que hoje exclusivamente empregados na periferia.
Acho que perdemos sobretudo a capacidade de discutir o que é democracia, quando ela nos foi devolvida, e que o que é o poder do Estado, o que são as forças policiais e a serviço do que e de quem elas agem. A revelação dos mandantes do assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes, e a simultânea, quase que aberrantemente intempestiva proposta do governador do Rio Grande do Sul de melhoria para segurança pública, deixando nossos dados à mercê da polícia como se fosse o SNI, são precisamente sintomas disso.
Li há umas semanas o último livro da jornalista argentina Leila Guerriero, La llamada, sobre a história de Silvia Labayru, uma sobrevivente do campo de concentração estabelecido na última ditadura civil-militar argentina na Escuela Superior de Mecánica de la Armada (ESMA), hoje convertida em um centro de memória. Labayru é das poucas pessoas que saiu de lá com vida, das poucas mulheres que tiveram um bebê ali e que foi entregue a seus familiares. Conviveu com o medo de parir e tomar um tiro na cabeça, mas depois entrou em processo de “recuperação”, o que envolvia ser violada por um sujeito que a vice-presidente da Argentina, Victoria Villarruel, hoje visita na cadeia, e que inclusive a levava para casa para que sua mulher tivesse parte nos estupros. Alberto “El gato” González está preso desde 2021 porque Labayru e outras sobreviventes finalmente tiveram a chance de denunciar repressores por estupro como um crime separado do de tortura.
O fato de que Labayru era de família militar a ajudou a ser escolhida para ficar viva, não ser dopada e atirada nas águas do Rio da Prata. E também a ajudou o fato de que vinha de uma família católica, que era branca, loira de olhos azuis, e muito bonita. Estou ainda “morando” nesse livro porque ele puxa muitos fios desse emaranhado de coisas que é o autoritarismo e as políticas raciais na América Latina. Isso não está implícito no livro: a palavra raça é usada muitas vezes, e nós precisamos parar de achar que os argentinos são mais racistas que nós só que porque nós os percebemos como mais brancos e temos um pouco mais de tato, depois de que ofensas racistas foram transformadas em algo que te pode levar em cana. Basta ver o destino estranho do filme de Wagner Moura sobre Marighella protagonizado por Seu Jorge, todas as suas repercussões.
Já que esse governo não se presta a tornar públicas reflexões sobre o golpe de 1964, talvez estando tão refém dos militares quanto a jovem Silvia Labayru, deveria ficar a nosso cargo olhar ao redor e ver em nome do que e de quem exatamente aquilo tudo se passou. E porque se tornou esse passado que não passa, a morte de Marielle, fuzilada num carro como outros tantos guerrilheiros, deixa evidente isso.
Os argentinos tem um termo tirado de um discurso de Raúl Alfonsín, depois de um intento de golpe justamente motivado pelos julgamentos dos militares, em 1987: “La casa está en orden, felices Páscuas”. A nossa está longe de estar, mas a quem celebra, desejo um domingo relativamente tranquilo e agradecer aos que assinam, leem, comentam.
Para quem quiser ver mais, aqui está um vídeo de Leila Guerriero discutindo La llamada.
Adorei o texto e já to acrescentando esse livro na lista de leituras!
Eu nasci em novembro de 1979, então não lembro de nada da ditadura, mas lembro de coisas que aconteceram depois, como a eleição e morte do Tancredo Neves e a posse do Sarney. Obviamente que eu não entendia o que estava acontecendo, mas quando comecei a ler e ouvir sobre isso quando fiquei um pouco mais velho, tinha a sensação de que era algo recente, mas que felizmente nunca mais iria acontecer. Tolinho.