Toda cadeirada é um ato político
Sobre a ubiquidade da violência política no Brasil, ainda que não queiramos vê-la.
(Os irmãos Gumercindo e Aparício Saraiva, líderes da chamada Revolução Federalista, de 1893, tempos mais tranquilos)
Tenho ascendente em capricórnio então jamais tive traços adolescentes para perder. Se fui jovem um dia, foi por obrigação e não por espírito, já que sempre fui dada a ouvir música de velho, ler livros de velho, rasurar os livros de palavras cruzadas dos meus avôs e não entender do que raios meus pares estavam falando no corredor do colégio. Contei esse final de semana que, quando criança, colocava uma tábua de passar à guisa de balcão atravessada na porta de um dos quartos da casa da minha avó italiana e pedia para ela vir do quarto de costura e tirar livros comigo e com minha prima e minha irmã, minhas colegas bibliotecárias. Ou então que, com máquinas de escrever velhas, eu e minha prima produzíamos um pequeno jornal que se tratava na verdade de um compilado de cópias de reportagens de revistas antigas, datilografadas lentamente por nós.
“Cómo sobreviviste a la secundaria?”, me perguntou ele, rindo, enquanto caminhávamos no Mercado de Pulgas em Palermo e eu passava os dedos nas teclas de uma Remington empoeirada, contando do meu jornal, da minha biblioteca.
“La secundaria es aquél meme del perrito con los helicópteros.”
Um jornal e uma biblioteca imaginários no Menino Deus, em Porto Alegre, estão há um mundo de diferença, suponho, de jogar truco por dinheiro e fazer racha com Fiat 147 no conurbano bonaerense.
Falo disso porque dou aula para pessoas que nasceram pouco antes de eu começar a usar o Twitter e portanto agora já tenho verdadeiramente mais idade do que muita gente com quem convivo. Gente que não se lembra de Galdino, um indígena queimado em Brasília, e não estava vivo para saber que vendiam Curitiba como uma cidade com serviço de transporte público moderno ao invés de ser percebida como um antro de neonazistas, como outras da região sul. A mesma coisa que acontece, nas redes, com o Rio Grande do Sul e com Porto Alegre por parte de quem não tem idade o suficiente para saber ou lembrar que eles são berço do MST e de coisas escandalosas e esotéricas como o orçamento participativo.
“Como foi tudo pra banha rápido,” pensei, justamente conjurando essa democracia que segurei nos braços como boneca, enquanto explicava em aula semana passada as ilusões da cordialidade política dos anos 1990.
Quando o presidente que apareceu visivelmente cheirado na televisão depois de confiscar nossas poupanças foi alvo de um processo de impeachment. E não, digamos, por pedaladas fiscais.
Digo ilusões de cordialidade porque a cadeirada dessa semana pareceu sinalizar o deterioro dos bons modos na política brasileira. Constato que o deterioro foi, na verdade, mais da nossa (sic) crença nos espaços de debate político, ainda que acomodando as chacrinhas do horário eleitoral gratuito e de tantas CPIs. Como alguém que brincava de jornal e de biblioteca, sempre achei política algo importante, que requeria um tipo especial de habilidade e de espaço.
Sou velha o suficiente para saber que jornal em papel se lê de trás para diante e que não se entra em esquema de pirâmide, tipo as de produtos Amway. Isso são recursos algo indispensáveis hoje quando de vermífugo a criptos, tudo parece dar a entender que todo dia um malandro e um trouxa saem de casa, principalmente entre os stories do Instagram.
Venho de um lugar onde as rixas políticas eram, há pouco mais de cem anos, resolvidas com o fio de uma faca sendo levado de uma orelha a outra do adversário político. Portanto, os nostálgicos da civilidade que me perdoem: ela jamais existiu. Infelizmente, diferentemente dos Estados Unidos ou da Argentina, o Brasil não tem a compreensão de sua história enquanto um conflito civil, então acabamos nos surpreendendo com bobagem e não reagindo a coisa séria — como candidato ostentar o sobrenome do parente torturador como estratégia de marketing — como devemos. Como tem primazia a lógica da conciliação ou de que em nossa história “nada aconteceu” — aquelas leituras apressadas de que a população fica sempre assistindo tudo “bestializada” — parece que uma cadeirada é um fim de mundo quando na verdade achamos que nosso cotidiano violento não se reflete nos espaços sacrossantos do debate e do plenário.
No fundo, os espaços da elite.
É mais ou menos como a última página de The Heart of Darkness, de Joseph Conrad, uma única cena que antecede em alguns anos a frase de Walter Benjamin sobre todo monumento da cultura ser um monumento à barbárie.
O horror, o horror.