Minha única interação com o Porto Alegre South Summit foi uma vez que quase perdi um ônibus para ir trabalhar porque não conseguia, devido ao engarrafamento, chegar na rodoviária. Pairava por cima das vias próximas ao terminal — cheias de gente que se amontoa cotidianamente nas calçadas com cara de fome e cansaço — um zepelim. Lembrei da Geni de Chico Buarque, esse personagem que povoa meu imaginário como algo da ordem do infantil, contemporâneo a Xuxa. Só que a pedra era de crack.
Passei um verano porteño, entre o Ano Novo e o fim de minhas férias. Em meio às minhas parcelas de ir e vir, venir y volver, tanto Buenos Aires quanto Porto Alegre passaram por temporais catastróficos. Quando cheguei no Aeroparque em meio às Festas e passei pelos bosques e ruas arborizadas de Palermo e Almagro, ainda havia destroços de árvores por todos os lados e que ficaram ali por mais de mês. Antes de eu voltar a Porto Alegre para um intermezzo, ela mesma foi a vítima da vez e encontrei a cidade toda escangalhada, alguns amigos e conhecidos dizendo que estavam há 60 horas sem luz, como os moradores de Caballito que frequentemente cortam esquinas reclamando da mesma coisa. Quando voltei, eu estava, diziam, na Porto Alegre Premium: tinha água, luz e internet. Contudo, os destroços da árvores da rua continuaram ali quando saí pelo portão do prédio para ir ao Salgado Filho e voltar a Buenos Aires, quase um mês mais tarde, e numa onda de calor o contêiner de lixo de esquina parecia um difusor de aromas só que de morte.
Vi situações tão idênticas que no meu cérebro se embaralharam, como se as tormentas fossem as mesmas (são), como se Jorge Macri e Sebastião Melo fossem a mesma pessoa, ainda que Porto Alegre às vezes pareça um pueblito comparada a la ciudad de la furia.
Não é só que Jorge Macri foi a Punta del Este passear tão logo tomou posse e depois à Roma, deixando para trás uma cidade tomada de mosquitos. Não é que, alinhado ao presidente de extrema-direita, Macri despediu um monte de funcionários do município e já promete uma gestão cheia de perseguições e descasos, enquanto Sebastião Melo toma champagne de colete da Defesa Civil e todos os dias de manhã eu abra a newsletter do Matinal News e leia as reportagens do Gregório e de outros sobre as barbaridades cometidas pela gestão municipal nesse lado do banhado. É também ver que basta piscar para que uma casona velha seja derrubada a fim de que se construa uma torre de quinze andares de apartamentos com preço inacessível, enquanto há uma crise crônica habitacional, não importa para onde se olhe. Jorge Macri é um pouco pior que Melo, porque esse último ainda finge certo envolvimento com a cidade, faz cosplay de faz-tudo, pede motosserra (outra coincidência?) emprestada. No temporal dessa semana, que atingiu ambas as cidades e tudo que ficava no meio do caminho, compararam Macri à até então sumida Princesa de Gales.
Buenos Aires igualmente passou por uma polêmica em torno da privatização de espaços de lazer próximos ao rio, de costas para o qual aquela cidade também vive. Puerto Madero não é considerado um exemplo ao acaso e a única vez que fui lá, há mais de dez anos, me deparei com um TGI Fridays. Una decepción. Tudo tão previsível.
Ambas as cidades, como outras tantas, estão imundas por conta da terceirização do serviço de coleta de lixo e da privatização de outras atividades essenciais. No último mês, passei peleando com a alavanca de um contêiner de rua específico em Chacarita, do mesmo modelo daquele que jaz na minha esquina em Porto Alegre. Cuidava para não pisar no lixo que se acumulava ao redor, no entorno do qual também brincam as crianças das famílias que vivem em casas simples junto aos trilhos do trem da linha San Martín — hoje pairando sobre um viaduto e não mais rente ao chão — e que ainda não foram expulsas pela especulação imobiliária.
Lá também, agora mais do que nunca, as pessoas se metem dentro dos contêineres para revirar o que possam aproveitar. A figura do “cartonero”, ubíqua num país que agora tem 60% de pobres.
Caminhando numa cidade a que quiero mucho, por vezes me acometia um mal estar muito grande, uma sensação de que não importa onde, transito pela mesma miséria, um modelo de cidade que não reconhece fronteiras e que onde se olhe há gentrificação com luzinhas e cheesecake, como já disse em outro lugar, marcado pela falência do sentido de comunidade. As associações de bairros em Porto Alegre se converteram em grupos de whatsapp que se respaldam na insegurança para colocar câmeras por tudo e expulsar os indesejáveis de seu entorno (não vou comentar a Cidade Baixa porque esse é um caso sobre o qual já remoemos e elaboramos o luto, penso). Esses dias disse para amigos que minha casa fica num principado, onde posso ir e vir sem me preocupar, às nove, dez da noite, porque a rua está tomada de seguranças privados dos bares e restaurantes que pipocaram em seu entorno. À noite corro no parque com carros da Brigada pagos com dinheiro da Fundação Floresta piscando suas luzes a la disco lights, como diz uma canção de uma banda da qual já gostei muito.
Bairro de gente branca, para gente branca que não ironicamente já foi território negro, como Palermo uma vez foi.
Creio que caminhava por Villa Crespo, indo e vindo de algum café onde fui ler ou escrever e recebi uma notificação do aplicativo do supermercado mais famoso de Porto Alegre. Não era um pedido para que eu retornasse, como acontece quando fico muito tempo fora, mas sim uma oferta de desconto em ingresso para o Fórum da Liberdade. O empresariado local, antes mais discreto, mais sutil em seus pendores criptonazistas, agora apoia a vinda de Jordan Peterson ao lado de uma organização de extrema-direita, o Brasil Paralelo, e oferece amigavelmente descontos para esse outro evento que desde o princípio dos 2000 serviu como chocadeira de ovo de serpente. O antipetismo, carregado com o radicalismo que essas pessoas projetam sobre a esquerda ao não querer se olhar no espelho, foi o que nos levou aos Mauro Cids, aos Andersons Torres, ao deterioro não apenas da coleta de lixo e dos serviços básicos prestados pelo Estado e pelo município, mas também de um ideal de democracia que ainda que meio palha — para ficar no portoalegrês — deve muito ao Rio Grande do Sul.
O governador do Estado, um cara da minha geração, que nasceu metido nessa água na qual se ferveu um sapo sem que muitos de nós notássemos, ontem estava de boné empolgado no South Summit falando das benesses de fazer política e transformar a vida das pessoas. Summit em inglês não quer dizer apenas encontro, mas também ápice, pico. Estão nas alturas no zepelim da Geni, deliberadamente ignorando o que tem abaixo.
De fato, políticos como ele transformaram a realidade: nesse abismo em que quem vai ao Cais Embarcadero, ao Puerto Madero, não sabe mais em que cidade está.
(Imagem: meu bairro onde é ainda meu bairro)
Primoroso, primorosa. Texto quase triste, sobre trastes de governantes e frangalhos de cidade. Me pergunto: há espaço pra alguma esperança?