A operadora de celular da qual sou cliente teve uma queda estrondosa, retumbante, no seu serviço de roaming internacional. Pelo que pude identificar em uns poucos tweets caçados, outros usuários de outros países que não o Brasil estão ou estavam na mesma situação. Comprei um chip, mas a lei argentina exige que os chips sejam cadastrados nominalmente e até agora meu número não foi ativado.
Fiquei como nas situações em que viajava antigamente, mendigando wi-fi nos cafés, algo que hoje não se deve fazer com frequência, por todas as coisas que agora estão em nossos celulares. Aquela que antes se limitavam às carteiras e aos segredos. Me senti vulnerável, também porque algo mudou na minha relação com o mundo e agora tenho quem me busque quando estiver na rua, cruzando semáforos entre as mesa de bibliotecas às dos cafés.
Ou talvez tenha me agarrado aquele pânico de estar em frente a algo — como as chuvas — que não posso controlar, mesmo que seja algo mínimo. Algo que tinha que esperar pacientemente que voltasse ou passasse, como a chuva ou água mês passado, ou ainda a tristeza que simplesmente me deixou hoje, desde de manhã, me arrastando pelos rodapés.
Chama-se tensão pré-menstrual.
Esse mês ela decidiu se manifestar assim. Acordei essa madrugada de um sonho em que eu tinha que comprar mais um guarda-chuva apesar de na vida real eu já ter uns quatro. Qualquer sentimento de fraqueza, de necessidade de proteção que eu sinta, desde a enchente, se transforma nesses pesadelos ou sonhos bobos em que atravesso charcos, vejo manchas de umidade no teto, me perco de noite enquanto fujo de uma garoa fina.
Ou então preciso comprar um guarda-chuva.
Ademais, e aqui outros seres errantes e que vivem com o cérebro cheio de outros idiomas quiçá me entendam, acordei sem saber direito quem sou. Quantas coisas diferentes estou escrevendo e para quê, em que linguagem, e quantas coisas vivi? E também a bagunça mental e emocional de estar num relacionamento em que falo outra língua, uma terceira que sub-repticiamente passou a ocupar um canto do meu cérebro, mesmo que cheia de estranhezas. Por isso acusamos as pessoas que perdem o sotaque de traidoras, porque aparentemente deixaram para trás quem eram antes. Durante muito tempo achei que, como na internet, eu poderia ser outra quando não estivesse falando português e ocupar um lugar talvez irreconhecível pela ausência dos marcadores de pertença na minha forma de pronunciar as palavras.
Minha terapeuta me disse que adquirir uma nova língua é construir um novo édipo, ocupar novas regras e talvez por isso em outra língua sempre me sinto mais livre, outra completamente. Não à toa uma das discussões mais angustiantes que já tive com meu pai aconteceu porque eu apenas respondia a ele em outro idioma. Talvez por isso eu também tenha algum medo de me atrever a escrever. É deixar de ser.
Mas sei que não é bem assim. Não só tenho claramente um sotaque como ainda saio andando, na maioria das vezes, para o lado errado. A Renata de sempre.
— ¿Cómo no me dí cuenta que estábamos sobre Córdoba y no Scalabrini Ortiz?
— Porque esa parte de tu cerebro no funciona. Tenés muchas otras que te andan muy muy bien, pero esa, no.
E apertou minha mão.
Sylvia Molloy diz que o bilíngue fala, apesar de ter duas (ou três) línguas sempre a partir de um lugar de constante necessidade, a falta de dizer algo que não na língua em que está falando. Talvez já tenha escrito isso aqui, inclusive, em outra missiva deste espaço, mas repeti-la é sinal dessa necessidade em si mesma.
“Macht schnell”, me disse o argentino ontem porque eu estava me demorando com a mochila e o casaco antes de sair para a biblioteca. Um resquício do colégio primário alemão que ainda subjaz e com o qual ele me conta um pouquinho de quem já foi, com que sotaques já falou.
Expliquei ontem que parte do meu incômodo em estar sem sinal de celular era não poder usar o Google Maps, não pode me achar se eu saísse andando na direção contrária, como sempre faço.
Ele só me olhou, me dizendo com os olhos que sou muito mais do que minhas desorientações momentâneas, em qualquer idioma que seja.
Aproveitando que tem quem te busque e socorra, permita-se se perder na cidade. É angustiante, sim, a gente se sente a criança que perdeu a mãe no supermercado, mas é todo um processo também.
Só me achei aqui (e em todos os lugares em que morei) depois da primeira vez que me perdi. É um rito de passagem.