Não sei muito bem como começar a explicar o que aconteceu. Daí entendo as fissuras que geraram as guerras e os morticínios do século XX nas atribuições de sentido que nos fornecem essas casas de paredes porosas, essas que chamamos história, literatura, filosofia. Se nem sentar em frente a alguém e falar sobre uma enchente ou como se elegeu um presidente como Bolsonaro parece fácil, que dirá sobre coisas muito piores.
Nós naturalizamos o que chamamos de “causas” e “efeitos” quando estamos no colégio e alguém nos explica o que foi um acontecimento dito histórico, distante no tempo e de grandes proporções, mas viver essas coisas já são outros quinhentos. Em uma entrevista,
disse que nós, no Rio Grande do Sul, passamos pelo infortúnio de ter duas experiências que consideramos “históricas” em um curto espaço de tempo — a pandemia e as inundações — e que isso é exaustivo. E que não saímos melhores dessa experiência. Pelo contrário.A história, que era para ter acabado no início dos anos 90, cansa e nos deixa, sobretudo, meio afásicos. E é muito fácil perder a paciência com quem não passou pelo que nós passamos.
A cidade onde trabalho não foi diretamente afetada pelas enchentes, mas como é parte do complexo hídrico da Lagoa dos Patos, estando próxima à Lagoa Mirim, o solo está todo encharcado. Do outro lado da ponte, onde começa o Uruguai, a água não desceu de onde se aninhou embaixo da ponte Barão do Mauá e sobre a pequena Rambla. Alunos e alunas que não são do estado ficaram com medo: de que algo assim poderia acontecer lá, dos bloqueios nas estradas, da aniquilação do aeroporto. Quando voltei para lá, depois de uma viagem mais longa em que tentei enxergar o que podia da estrada através do que ainda chovia sobre Porto Alegre, tive que responder muitas perguntas. E ao mesmo tempo que não conseguia falar sobre outra coisa, isso ia ganhando um peso cada vez mais difícil de carregar.
O peso de ter visto um homem em surto no chão do terminal rodoviário provisório na Avenida Antonio de Carvalho, onde os passageiros dos ônibus intermunicipais se amontoavam numa segunda-feira de chuva, e ter de passar reto, meio empurrada pela multidão.
A verdade é que não há espaço para mais água no Rio Grande do Sul, mesmo onde ele se alavanca sobre o Uruguai, e nós estamos com pouco espaço para qualquer outra coisa, saturados de outras tantas, como se fôssemos nós mesmos os esgotos pluviais.
“Não quero falar sobre as inundações”, disse na quarta passada à noite aos meus alunos, quando queria só mergulhar no assunto da aula para me anestesiar. Nos séculos XVIII e XIX, quando, rompidos pela guilhotina, os cordões que explicavam o mundo europeu e ocidental também estavam sendo desfeitos.
A repetição de “não, só fiquei sem água”, “minha irmã saiu de casa”, “não, não perdeu nada”. O emprego de uma litania de conjunções adversativas que sempre indicam que há quem esteja pior, de flagelado a morto, e que indica poderíamos nos perguntar quem é a verdadeira testemunha da inundação. A narrativa dos dias caminhando pela cidade em busca de água (com gás para tomar, potável para tomar banho e cozinhar, qualquer uma para dar descarga) e das histórias alheias, dos caminhões do exército e dos helicópteros é algo difícil de organizar quando se está falando. Posso escrever sobre os dias que passei com o cabelo sujo, com roupa de duas semanas e sem dormir direito, mas falar olhando diretamente na cara de um interlocutor distante e ver sua reação ao que desafia o verossímil ou pior, causa pena, é algo de outra ordem.
“Virei um poodle burro com medo de chuva,” repeti nos últimos dias, quando por ventura voltou a chover e uma angústia invisível se pousou sobre minha testa, me fazer ver tudo turvo, ouvir tudo mal e chorar no banho como se tivesse quinze anos.
Aos poucos, nos últimos dias fui retomando as escamas do que me fazem professora, outras que me fazem pesquisadora, as coisas que me fazem quem sou, e que me são confortáveis.
Creio que isso é o pior desses eventos. A sensação de que, por um período, nos perdemos de quem somos para ser outra coisa a despeito de nós mesmos, na maior parte das vezes vítimas. Também cozinheiros, empreiteiros, passeadores de cachorros, cuidadores, garçons e garçonetes, assistentes sociais, membros de equipe de resgate, todos na verdade virados em esparadrapos, linha de sutura para tentar remendar uma comunidade, apesar de nossas diferenças mútuas e das estranhezas.
A isso soma-se esse movimento estranho de pertencimento. Eu nunca me senti propriamente porto-alegrense, avessa ao ato de deambular de tarde pela Redenção de mate em punho, uma cafonice. Comecei a tomar mate na pandemia porque o chá se fez caro, o café me fazia mal e precisava de uma companhia ao lado do computador, enquanto tentava sobreviver agarrada a um teclado.
“Isso pra mim é casa”, disse uma vez a um namorado, ao ouvir os acordes de uma milonga de algum disco quando morávamos fora, “mas é estranho.”
Admito que o nome dessa newsletter era um indicativo geográfico a respeito de onde eu falava, em português, muito mais do que uma pretensão de orgulho. Sou a primeira a dizer que não há muito o que ver em Porto Alegre e que essa discrição quase dolorosa é o que gosto e odeio nela ao mesmo tempo.
Agora não é mais. Como a água alta embaixo da ponte, me aninhei em definitivo nessa coisa estranha que é o Prata.
“Tenemos esas que son bombachas”, me disse uma vendedora numa loja em Buenos Aires, no último domingo.
E meus olhos brilharam. Saí com duas, um disparate. Sobre isso consigo falar.
Renata, tu é tão necessária. 🫶