Quantos fins se pode viver?
Os fins de mundo são sempre relativos e o meu, de certa forma, já chegou.
(A praça da Alfândega, um dos meus lugares favoritos de Porto Alegre e onde meus avós paternos se conheceram, tomada de água ontem à noite — foto do Ramiro Sanchez)
Há uma foto da enchente de 1941 que circula na internet na qual está meu bisavô. Foi tirada na estação ferroviária de Rio Pardo, da qual ele era chefe. Na primeira vez que vi essa foto, em seu formato físico e na casa da minha avó, ela me apontou um tapete na sacada da estação e disse “possivelmente foi a Bá que deixou aquilo ali”. “Bá” era como eu chamava minha bisavó, que cheguei a conhecer; uma corruptela de uma corruptela.
Sempre gostei disso, naquela foto: entre tantos homens e água, a presença daquela mulher cuja dentadura lembro de sempre ver em um copo de plástico na hora da sesta.
Meu outro lado da família também estava envolvido em desgraças em 1941, porque viviam (vivem) no Vêneto, na Itália. Meu avô materno já tinha perdido um irmão mais velho na Albânia e ia, ao final daquele ano, fazer 18 anos. Foi mandado para o front, como muitos meninos, e voltou a pé, sem as unhas dos mindinhos, para depois de um tempo se juntar aos partigianos, quase morrer no meio de um matagal numa emboscada nazista. De certa forma, ele entendeu que um mundo tinha acabado ali, para ele, e veio parar no Brasil.
Tanto nos anos 40, como agora estamos vivemos fins de mundos, esses que não esperamos que nos toquem e que permaneçam imóveis em livros de história. Nada é inerentemente histórico, eu explico aos meus alunos nos primeiros semestres de graduação: nem uma enchente, nem uma pandemia. Porque os fins de mundo são sempre relativos a quem deles vai sobreviver. E, porque a história tampouco nos oferece lições, já que nós é que escolhemos o que vamos aproveitar dela — essa carcaça abstrata —, nós fazemos escolhas e debatemos coisas que parecem se repetir quando um vai lá e fuça um pouquinho no passado.
A história não julga, não ensina, não demonstra. Quem faz isso somos nós mesmos e a escolha de silenciar, esquecer, superar — sobretudo quando digitando um par de números numa urna eletrônica —, é também nossa. Que não esqueçamos disso em outubro próximo: em quem não fez a devida manutenção das comportas do Guaíba, em quem flexibilizou legislação ambiental, em quem destinou verba de emendas parlamentares para seu estado e para o quê.
O mundo se espatifou entre os anos 1920 e 1945 por, entre outras coisas, ter de administrar as consequências do século da locomotiva, das fábricas, do colonialismo e das revoluções, da mesma forma que nós estamos administrando as consequências de outras tantas coisas, entre elas o surgimento de bilionários, da velocidade da comunicação, do tempo e das urgências, e o aumento da desigualdade social às custas do coletivo. Se estamos hoje nos sentindo como uns cachorros correndo atrás de nossos rabos é porque certo discurso sobre o Estado, comunidade, capital e progresso venceu no final do século passado e resolvemos deixar para trás uma série de dispositivos, vocábulos e instrumentos pelos quais se brigou muito ao longo de algumas de suas décadas. Para isso contribuiu até mesmo uma ideia de história, desconectada e utilitarista, que alijava do presente, como objeto, o passado. Uma matéria chata que cai no exame vestibular ou apenas curiosidade: fotos de uma enchente em preto e branco no jornal, “hoje, há 80 anos”.
O Estado, para muitos, se tornou uma coisa trambolhenta e velha da qual nós necessitamos nos despojar, mesmo que ele servisse aos nossos próprios interesses, não importando muito a qual classe social pertencemos. O futuro passou a ser isso que chamamos de “livre iniciativa”, uma coisa um tanto peculiar para uma espécie que necessita, biologicamente, viver em bando.
(Nossos filhotes não nascem já caminhando sozinhos para fugir de predadores; nossas fêmeas dependem do coletivo para amamentar, cuidar, criar. Somos o que biólogos chamam de uma espécie gregária.)
Convenientemente pensamos no coletivo apenas quando eventos como o que ocorre hoje no Rio Grande do Sul acontecem e daí precisamos sair por aí desesperados carregando doações e a culpa de estar vivo, seco e a salvo. Pensamos na história somente como uma palavra solta, quase um adjetivo, à marca que alcançou a água entre as ruas que eu costumo caminhar com pressa e de fones de ouvido, quando está tudo bem, e não é bem assim. Ela é uma forma de nos relacionarmos com o passado, torná-lo menos fixo.
Para uma geração de jovens, a crise climática vai ser como a bomba atômica foi para aqueles que nasceram por volta de quando Porto Alegre se inundou desse jeito pela última vez, quando meu avô materno rastejava num bosque escutando os coturnos dos soldados da Wehrmacht. Uma ameaça constante, mais tangível para uns do que para outros, nas margens das quais muita gente vai morrer. É algo que deve orientar um debate existencial sobre como vivemos, para onde vamos (se é que estamos sempre indo a algum lugar).
Aqui, na minha janela, a bomba já caiu e a previsão para semana que vem é de ainda mais chuva.
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Desejo que todos vocês logo estejam bem!