Quando se esgotaram os PIX, e as gavetas de roupas ficaram meio vazias, quando os cobertores já tinham sido todos entregues, sobrou o tempo. E decidi dá-lo, pelo menos um pouco. Fiz o que o senador eleito pelo Rio Grande do Sul — o ex-vice presidente que durante a pandemia ostentava sempre uma máscara com o distintivo do Flamengo (uma aberração) — chamou de “desvio de função”. Eu já tinha sido desviada igual: da estrada, da minha rotina, dos meus hábitos mais elementares. Demorei, confesso, a encontrar uma rota. Fiquei semanas perdida, paralisada, sem saber o que fazer, como agir, onde eu poderia ser útil.
Incapaz de dar aulas de história, virei garçonete.
Toda vez que volto do refeitório comunitário onde tenho voluntariado, venho com os neurônios fritos de ter de prestar atenção em muitas coisas ao mesmo tempo, tentar não tropeçar carregando uma bandeja com copos de suco e pratos de comida. Sou introvertida, então esse novo papel que tenho que assumir me custa. Tento ouvir bem o que aqueles com quem trabalho e principalmente aqueles que atendo — uma mescla de pessoas do abrigo da frente, de outros abrigos, de gente em situação de rua, de voluntários e servidores — têm a me dizer. Do pessoal do abrigo, principalmente quando querem me dizer algo mais do que se vão comer o prato do dia completo ou sem alguma coisa.
“Deixa eu tirar isso aqui para vocês ficarem mais cômodos,” sai automaticamente enquanto afasto pratos, talheres e copos de plástico sujos e vazios, “querem um chá, café?”
Às vezes os homens pedem café, alegando que não podem negar nada mais de uma vez depois de negarem mais “um repeteco”.
Eu não pergunto muito, outro que se está tudo bem, se precisam de mais alguma coisa, suco ou água, sobremesa, quando tem. Compenso com sorrisos e a informação, baixinho, de que falo espanhol para as mulheres que falam português com sotaque venezuelano. Para as crianças, viro contrabandista dos bolinhos do estoque de doações que tomaram toda a parte interna do que era antes tão somente um bar e restaurante —que confesso que nunca tinha notado —, sempre entregando o dobro do que me pedem.
Depois, sento para comer ao lado dos meus “colegas”, pegando pedaços de conversas, encontrando coincidências aos pedaços também: uma colega historiadora, uma amiga de um amigo. Porto Alegre é pequena sempre, até mesmo na tragédia, quando a enormidade do que nos está passando parece avassaladora. A comida ali é sempre gostosa, por mais simples que seja, feita por quem está afim de servir para alguma coisa quando todos nós nos sentimos inúteis e só nos resta virar esse nome escrito com canetinha num pedacinho de fita crepe de modo a nos identificar.
“Tu é a gerente aqui?” me perguntou um cliente, leia-se, uma das muitas pessoas que foi parar no meu bairro depois de o seu ser alagado.
“Não, sou só voluntária,” respondi, enquanto terminava de varrer o salão, “e vim só essa semana.”
Os tempos e os rostos estão completamente embaralhados. Se me dissessem que estou varrendo um salão, cuidando para pegar bem os farelos entre as mesas, desde meados de março, eu diria que seria plausível.
Viramos, quase todos, algo que não éramos, sobretudo especialistas em hidrologia. Agora sabemos, com uma consciência que chega a doer, que se ventar sul, estamos todos fodidos.
Vai ventar sul esse final de semana.
Na quinta-feira, dia 23 ao meio-dia, fui na chuva para o restaurante. O deck já estava todo molhado, as lonas mal e mal cobrindo as mesas, já gordas com o volume da chuva que tinha me acordado na madrugada, desesperada. No dia anterior, estávamos comentando que o número de pessoas nos abrigos estava começando a diminuir, apesar da temperatura alta nos dizer que vinha “mais coisa” por aí. Voltei uma meia hora depois, só contribuindo com minha caligrafia na tampa de algumas marmitas que foram entregues abaixo da nova tormenta. Meu paraguas para seis personas comprado na Avenida Santa Fé num dia de chuva intensa, não dava conta do que o céu jogava sobre nós, porque as gotas ricocheteavam no chão e molhavam minha cara por baixo da lona.
Alguns pontos baixos do bairro já começavam a acumular água de uma forma que seria normal se ela tivesse para onde escorrer, apenas inconveniente por uns minutos. Cresci com minha rua se transformando numa cascata, arrastando os sacos de lixo em direção do final da Plínio Brasil Milano, e isso jamais me transformou em outra coisa. Questão é que agora todos nós sabemos que não, que parece não haver espaço para tanta água mais no Rio Grande do Sul sem ser por cima de todos nós.
Se os rios decidiram desviar seus cursos, como não desviarmos também?
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Para relatos muito contundentes do que é ter seu lar alagado, leiam a
.Para ajudar uma artista que, como muitos, perdeu tudo também na enchente, aqui está a
, que tem uma vakinha especialmente para reconstruir sua vida.O lugar onde tenho trabalhado vai seguir pela próxima semana operando como refeitório. Sugiro que quando eles reabrirem, a gente não deixe o salão vazio. Sigam o Solos no Instagram para dar uma moral e ver o que ainda necessitam de doações.
"Entregando o dobro do que me pedem" 💗