O poder é de vocês
Sim, decidi escrever sobre o zeitgeist do voluntarismo com a natureza que aprendi no colégio.
Tive a peculiar experiência de estudar num colégio privado porém pequeno, que meus pais diziam que parecia uma “brizoleta”, pois era uma construção de madeira bastante simples, com janelas basculantes e cortinas de tecido de chita xadrez verde e branco. As salas de aula contínuas davam a um corredor de concreto com lajotas que ladeava um pátio de areia e uma cancha feita de cimento e pedras sobressalentes que sabiam ser cruéis sobre nossos joelhos. Era um experimento, uma escola montessoriana criada no Menino Deus atendendo uma gama muito ampla de alunos: as filhas de um futuro prefeito, de professores universitários, de repórteres da RBS, os filhos de Luís Carlos Goiano. Um microcosmo de crianças do bairro e de outras nem tanto, umas até de Viamão.
Fui estudar longe de onde morava porque era o bairro de minhas avós, esses baluartes que iam me esperar no portão e depois me recompensar com café com leite e sonecas no fim da tarde.
Nesse colégio aprendi a ler, escrever, fazer origami, jogar futebol e alguma coisa de espanhol. Também a tirar notas ruins em matemática, cantar o hino nacional e sentar bem ereta com as pernas cruzadas como mais tarde lembrei de fazer na yoga. Aprendi também o que era inveja, rancor, amor e sangue. Tudo nesse espaço tão exíguo, espremido entre o Centro Estadual de Treinamento Esportivo, a EMATER, e uma casa ao lado que tinha um Fila furioso no qual atirávamos as frutas de um butiazeiro, escalando os gomos do tronco pintados com tinta, o qual também nos servia de ferrolho. Naquela época, para nós o cachorro esse era apenas ameaçador e sua dona, uma velha chata.
Um dia, não lembro em qual das séries iniciais, minha professora apareceu com duas lixeiras. Uma cinza e outra vermelha. Nos explicou que uma era para “lixo seco” e que aquela da cor dos antigos táxis de Porto Alegre, um vermelho quase laranja, era para cascas de fruta, tampas de iogurte e lenços de papel revestidos com os fluídos de nossas viroses infantis. De repente, estava mal que misturássemos os copos plásticos de refrigerante ou suco com os farelos orgânicos dos nossos lanches, os guardanapos imundos dos cachorros quentes comprados no bar cujos preços eram atravessados pelos planos econômicos do fim dos 80 e início dos 90.
Desde então, não consigo atirar plástico no mesmo recipiente em que haja resíduos orgânicos sem uma parcela imensa de culpa ambiental e católica.
A explicação para isso é simples e política: em junho de 1990, a prefeitura de Porto Alegre, sob gestão de Olívio Dutra, começou com a coleta seletiva de lixo. E eu, essa criança suscetível aos bichinhos e à ideia melancólica meus potes de Danoninho levando milênios para se desintegrar em algum aterro, a internalizei, separando o lixo pelo resto da vida mesmo onde não separavam (os prédios onde morei no Rio de Janeiro, para ficar em um exemplo). Mas há algo aí, de fundo, cuja expressão está também num desenho animado que eu assistia mais ou menos na mesma época.
Em 1990, foi lançado Capitão Planeta, que entrou para a grade de desenhos do Xou da Xuxa um ano depois. Teve seis temporadas, mas para mim parecem umas 108, porque quando crianças as repetições nem sempre nos incomodam, muito pelo contrário, gostamos de rever coisas. O personagem título era o que menos interessava da história. O fio condutor era o grupo de jovens, um de cada continente, os planeteers, em inglês, um trocadilho com volunteers. Não lembro como se chamavam em português, mas nos créditos finais, o desenho chamava os espectadores a ser também um deles: “you can be one, too”, eu escutava na cozinha da casa de onde vivemos uns anos mais tarde na Califórnia e minha irmã assistia o mesmo desenho no Cartoon Network no idioma original.
Parece genial a ideia de criar um desenho em que adolescentes ajudam a salvar o planeta, lutando contra os “poluidores”, com episódios baseados em casos reais (lembro de um inspirado no acidente do Césio-137). Sei os nomes dos personagens de cor até hoje: Kwame, da África; Wheeler, do Brooklyn; Linka, da União Soviética e que portanto mudou de país no segundo ano da série; Gi, da Ásia; e Ma-Ti, um indígena do Brasil que tinha um macaco-aranha de estimação chamado Suchi. Hoje isso tudo seria facilmente “cancelado”, por motivos óbvios.
Um aparte: confesso que eu era especialmente fascinada com a tensão sexual (!) entre a comunista e o gringo (hoje os jovens na internet chamam isso de shipping, torcer por uma relationship).
Cada um dos adolescentes tinha um anel que invocava um elemento: o africano, terra; o brooklynite, fogo (nenhuma surpresa); a soviética, vento; a asiática, água. Ao Ma-Ti, esse menino doce, lhe sobrava o coração, naquela vibe de que a Amazônia é um órgão necessário ao funcionamento do mundo. Como o template era parecido com os seriados japoneses, tipo Changemen, que o antecedem, em último caso todos os poderes eram unidos para evocar não um robô gigante, mas o Capitão Planeta, um homem cor verde-água que resolvia tudo no final. Os adolescentes também eram orientados por Gaia, que nos primeiros episódios tinha a voz de Whoopi Goldberg. Gaia, segundo consta, tinha estado adormecida por todo o século XX e se despertara para ver o quão mais poluído se havia tornado o mundo.
O ponto é que o desenho, de modo geral, colocava sobre nós — “o poder é de vocês” —, nas ações individuais a responsabilidade de “cuidar do planeta”. Gastar menos energia, usar bicicleta, economizar água e não jogar lixo no chão são ações que estão muito bem para apaziguar nossas consciências, mas que são ínfimas perto do que o desmantelamento do Estado, algo iniciado contemporaneamente ao desenho, enseja. A associação de mecanismos de controle das ações humanas sobre o mundo, através do aparelho estatal, a categorias temporais antes colocadas em uso para justificar a defesa de seu próprio estabelecimento — “atrasado”, “antigo”, “obsoleto” — fez com que recaísse sobre os indivíduos a conservação daquilo que nos resta cuidar do planeta e que, confesso, nem sempre entendemos muito bem o que é.
Nosso alijamento da natureza, dentro desses espaços chamados cidade e dos “corre” que cada um necessita fazer para sobreviver, atirados às margens de rios que nem sabemos o que são, fazem dessa imposição algo muito injusto. Não adiantou me explicar na escola ou por desenhos animados o que eram matas ciliares, erosão, assoreamento, desertificação e regimes de chuvas quando a única coisa que pude fazer para frear a inundação da minha cidade foi ter tentado votar em gente que era “menos pior”, mesmo assim sem qualquer efeito.
Nos últimos dias, perto e longe do caos, ouvi esses novos apitos de cachorro que visam recobrir a lama do último mês com terror e, ao mesmo tempo, stories bonitos: “corpos boiando”, “povo pelo povo” e “mutirão de limpeza”, um específico de um instituto que é patrocinado pelos mesmos agentes políticos que nos trouxeram até aqui. Mais ou menos como produzir um desenho animado em plenos anos 90, quando o neoliberalismo era aventado pelos quatros cantos e começava a aquecer os motores de uns quantos tratores.
Enquanto digito, acompanho com os olhos quatro urubus voando sobre o bairro e penso no quão injusto é os compararmos com oportunistas; eles que têm uma visão tão mais clara do mundo que ocupamos.
Muito bem escrito e direto ao ponto. A verdade é que é muito fácil colocar no indivíduo a responsabilidade, como você tão bem expressou, como se duas mãos em formato de concha pudessem carregar água o bastante para suprir a poluição gerada por uma indústria química pesada. A salvação do mundo (sobre a qual sou cético) não virá do xixi no banho.
obrigado por este texto.