(Menina com uma boneca, Jean-Baptiste Camille Corot)
Fui lembrada inadvertidamente essa semana de uma cena de um documentário sobre outro documentário, que teria tido a colaboração de Alfred Hitchcock e que nunca saiu, sobre a liberação dos campos de concentração nazistas. Lembrei do corpo nu de uma mulher sendo carregado por um soldado meio de cabeça para baixo, meio de lado, com a pele muito branca no filme preto e branco parecendo, de longe, com o plástico de que é feito uma boneca.
Às vezes, vivas ou mortas, principalmente quando desconjuntadas, parecemos bonecas.
Há coisa de menos de um mês, meu namorado murmurou sentado no sofá aqui de casa que existiam imagens e mensagens de texto que comprovavam que Alberto Fernández, o ex-presidente da Argentina, tinha cometido violência de gênero contra sua ex-companheira, Fabíola Yáñez. Fernández já tinha decepcionado, creio, uns 110% do seu eleitorado, escolhendo desaparecer no último ano de seu mandato. Quem aparecia governando de fato era o ministro da economia, aquele que perdeu a eleição para Milei. Essa agora, das fotos que não demoraram para aparecer do olho e do braço roxos de Fabíola, era uma derradeira pá de cal na carreira política de um sujeito que foi transformado em um candidato carismático pelas força das redes: nelas, parecia um tiozinho “progre” que tinha um border collie chamado Dylan, que tocava Spinetta no violão, tinha um filho não-binário e que visitou Lula na cadeia. Jurou que ia fazer a lei da descriminalização do aborto ser aprovada, fez uma gestão que nos pareceu utópica da pandemia, e lançou um monte de políticas de gênero. Nós desse lado do espectro político, que estávamos sendo governados pelo que parecia ser uma avestruz chocada pelo próprio cadáver de Adolf Hitler, tivemos muita inveja. Tiene que pegarse un tiro, disse Sebastián.
Doeu que alguém, talvez a própria Fabíola, achou que era necessário, isso de mostrar o corpo marcado. Era o ônus da prova, que foi esmiuçado como se pintado artificialmente: “isso não é um hematoma, é maquiagem”. Nem quando exposto, o corpo da mulher é real o suficiente.
Me vi rindo triste, esse fim de semana, dizendo para ele no telefone “hold my caipirinha” e contando do caso de Silvio Almeida, o ministro da pasta de direitos humanos, um homem negro e militante, acusado por uma colega, a ministra da igualdade racial, de assédio sexual. Foram denúncias que vieram à tona de uma forma atabalhoada, mais ainda do que no caso argentino supracitado, com vazamento de denúncia anônima, indireta online, e post do ministro em sua defesa por meio de nota do ministério, a la “o ministério sou eu”. Também colocaram o ônus em Anielle Franco de dizer alguma coisa, porque nós, essas bonecas com corpos articulados, sempre temos que lançar mão de mais membros do que temos. Se no cotidiano já é assim, imagina quando alguém rebate com jargão pesado o que estamos tentando dizer pelas vias que nos sobram (os vazamentos, as entidades, alguma jornalista de confiança).
Assacadas, ilações. Todo jargão é uma forma de exclusão, deixa quem é de fora sem entender xongas de propósito.
Como toda pessoa com um histórico de depressão clínica, eu era assídua telespectadora da GloboNews até o momento em que além de baixar a dose do meu Escitalopram, contrataram um guri que faz as vezes de Milei bem educado. Antes mesmo de eu saber quem era Javier Milei, esse piá já falava no Twitter e em sua coluna em jornalão que deveria ser possível eu vender um dos meus rins ou uma fatia do meu fígado no Mercado Livre, se quisesse. Proferiu, desde que apareceu na televisão, uma série de outras afirmações absurdas. Não me surpreenderei se, um dia, ele sugerir ao Marcelo Cosme — que representa o neto de toda vovó que assiste aquele canal — que essas mesmas vovós possam ser mortas para servir de bolacha e suprir um ramo do mercado de bens alimentícios, cada vez mais complicado por contas dos extremos climáticos.
Com esse cara, descobri que nem todo filho de professor universitário padece de auto-exigência debilitante.
Senti zero surpresa, portanto, quando ele fez a alusão machirula de que muita mulher denuncia homem por hobby ou maldade, contribuindo aí para dilacerar o pouco do que ganhamos em termos de garantia de escuta para denunciar agressores, abusadores e aquele nosso colega, amigo ou chefe que se passa. Fez isso, ainda por cima, rebatendo uma historiadora e professora negra em cadeia nacional. Não sou filha do Gianetti, mas na minha opinião, isso sempre advém de um lugar de empatia com o agressor ainda que não totalmente consciente. Coisa de homem que morre de medo de que lhe coloquem algum limite, que digam que ele está se comportando mal, e que consequentemente se horroriza quando incendeiam uma estátua de bandeirante. Aí geralmente, esse homem apela para aquele Papai Noel inventado no século XVIII, o sujeito universal, para dizer que duas pessoas descrevendo uma mesma situação são apenas uma dizendo uma coisa e outra dizendo outra, como se estivessem em pé de igualdade e fossem ouvidas da mesma forma.
Não leu Pode o subalterno falar? de Gayatri Spivak se não por desconhecimento, porque estava ocupado interrompendo o subalterno com o dedo em riste.
Como alguém que já teve de assistir, entre os luminares acadêmicos do Brasil, mais de um homem dizendo uma asneira que poderia ser tipificada como injúria racial ou importunação sexual em mesa de congresso, sem que ninguém ao redor tenha sequer piscado, só me cabe pensar que nós estamos sempre carregando ou segurando coisas. Principalmente quando quem faz o cocô fora do penico são nossos próprios colegas ou então companheiros de alguma causa comum.
Nós, essas bonecas de plástico, com juntas que se dobram muitas vezes até quebrar, para dar conta do mundo, mesmo quando não estejamos sendo convocadas a tal.
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Li agora há pouco uma frase da Matilde Campilho que dizia como a poesia não salva o mundo, mas salvo um minuto, e isso é o suficiente. Incluo aqui sua poesia em prosa 🌹
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