O ansioso é alguém que, por estar em constante estado de alerta, tem pesadelos quando se sente bem. Eu, pelo menos, sou assim desde os vinte e poucos anos, quando sonhava que tudo dava errado depois de tudo dar certo. O típico sonho neurótico, quase infantil.
O pesadelo de uma noite dessas foi correr. Estava correndo e parecia que meus pés não saíam do lugar, como se minhas pernas não acompanhassem meu fôlego, correndo por uma Porto Alegre que não era Porto Alegre, só parecia. “Se eu for por aqui, fecho oito quilômetros”, tinha pensado ao embretar por uma avenida ampla, que margeava um parque, como se fosse a Avenida del Libertador em Buenos Aires. Depois caí dentro de uma piscina pública, parecida à hidráulica do Moinhos de Vento, de tênis e tudo. Tinha que me explicar a um homem num escritório por ter sujado a água de lama.
Tudo isso depois de ter dito à minha psicóloga, na porta do consultório depois de minha última sessão, que eu estava feliz.
E talvez por isso mesmo há uns dias me dei conta de que perdi a paciência com a contabilização das coisas. Dos passos, dos treinos, dos likes, dos quilômetros e das palavras. Essa mania tinha sido um hábito exacerbado na pandemia, quando eu estava, como digo agora, enfermita e precisava fazer tudo para mim mesma, mas não só, para os outros também. Precisava me exercitar todos os dias, ler muito, levantar às seis da manhã para trabalhar, comer na medida certa, gastar mais de 500 calorias. Sempre estar fazendo algo e dando satisfação de que estava fazendo algo, uma síndrome que acometeu os que ficaram em casa quietinhos como eu, enquanto o mundo se arrebentava lá fora. Talvez isso explique, pelo cansaço comigo mesma, o pesadelo de não conseguir correr, embora queira e corra quando tenho vontade, mas agora só quando tenho vontade.
Me dei conta dessa minha irritação quando terminei de ler um livro há uns dias que fazia tempo que tinha começado. No início do ano, tomada pelo otimismo, decidi aumentar o número de livros do meu desafio do Goodreads, esse Strava de leitores, para o qual olhamos com alguma inveja quando alguém que ali é nosso amigo termina de correr 42km, ou melhor, ler, sei lá, Ulysses de Joyce. E daí, um dia, simplesmente esqueci de minha própria promessa, como também esqueci esse mês de ir até Chacarita acender um cigarro no altar do Gauchito Gil. Mas o desafio do Goodreads nada tem de promessa e sim de jogo.
Quando nos tornamos tão imbecis, jogando joguinhos o tempo todo?
Parece aquela época em que eu me ressentia por não conseguir ganhar as corridas do colégio ou prender os cabelos com um prendedor decorado de cadarços cor neon que ficaram na moda por uns cinco minutos e que, desgraçadamente, caíam dos meus cabelos escorridos.
Constatar que para tudo hoje em dia há um aplicativo de ceular é totalmente desnecessário. Constatar que para tudo hoje em dia há uma rede social gamificada já são outros quinhentos. Se eu quiser, posso deixar meus amigos a par de todas as músicas que ouço no repeat ou então de todos os episódios de podcast que não termino de escutar por pegar no sono. De todos os filmes que não terminei de ver ou de alguns que decidi terminar. Meus amigos podem acompanhar meus treinos, minhas leituras, minhas idas e vindas se, toda a vez que eu sair de casa, tirar uma foto fazendo-o ou narrar tal ato no Twitter. Meus amigos, portanto, podem saber se estou bem, se estou mal, o que comi, quanto dormi, para além das plataformas que monetizam nossos dados.
Há, principalmente entre minha geração, uma propensão a narrar a vida e registrar momentos por escrito e por fotos que é mais “realista” — no sentido de se propor a replicar a realidade da melhor forma possível — do que a performance que vejo nos mais jovens. Me refiro a esses de avatar de anime com users anônimos em redes como o Twitter que me lembram de como éramos quando mais jovens, na web 2.0, quando ocupamos aquele mato chamado mIRC.
Quando decidimos parar de nos esconder, me pergunto, principalmente sobre mim mesma, uma adolescente que uma vez vociferou o pedido de ser apenas um pedaço de pau com um cérebro? Aos dezessete anos eu não queria ter peitos, nem bunda, nem pernas, nem precisar controlar o quanto de sorvete eu comia a cada fim de semana de provas bimestrais. O mIRC era uma bênção. Uma amiga que se tornou astrônoma uma vez me falou, no primeiro semestre de nossas faculdades, sobre sermos apenas energia, matéria, átomos e eu suspirei porque queria nos ver assim e não tão dolorosamente tangíveis.
Quando decidimos que precisamos compartilhar até mesmo todos os resultados de todos os jogos de palavras que fazemos na internet?
Quando deixamos de fazer as coisas para nós mesmos?
Talvez alguém, de maneira bem humorada, me diga que preciso de um detox de redes sociais. Talvez alguém mais perspicaz me diga que se eu deixo como os outros usam a internet me afetar é porque isso diz mais coisas a meu respeito do que sobre os outros, mas é uma pergunta que eu mesma me faço antes de postar um story com uma foto da minha própria cara de cansada ao terminar de dar aula.
Ironicamente, estou novamente sem sinal. Voltei de viagem e descobri que a Claro, ao invés de abrir mais um ponto de conectores no meu edifício, tem feito uma dança das cadeiras com nossos cabos. Desde que viajei, me tornei aquela que sobrou, a que ficou sem sentar, e que vai continuar assim por sabe-se quanto tempo, porque amanhã viajo de novo.
“Jamais te ouvi tão braba,” disse meu companheiro, “enojada, tipo, mal.”
“Sou assim com a internet,” respondi com o tom de uma colegial mimada, “me desespera ficar sem contato com meus pares.”
Y sí.