(O sonho da razão produz monstros, de Francisco de Goya, seja lá o que for isso de razão)
Não sou Sergio Buarque de Hollanda, disse esses dias num tweet. Além de não ter um filho compositor famoso (ou qualquer filho), não sou dotada de todo o tempo do mundo para ler, escrever e pensar, porque lavo louça, aspiro a casa, faço compras, tenho uma discopatia degenerativa ao invés de uma esposa ou alguém que pago para se encarregar das tarefas de cuidado. Essas mesmas que permitiam a esses homens que machirulos admiram fazerem o que fizeram. Quando era adolescente, aprendi que lavar louça era um excelente momento para sonhar acordada, um respiro, mas que não se convertia em nada. Ficava tudo ali, no escorredor, e por isso não conseguia escrever. Parecia que fixar no papel as bobajadas que me cruzavam a cabeça entre o detergente e o ralo era meio vergonhoso.
O que sim, sou, é filha de professores universitários e sou eu mesma uma professora universitária, então quando o assunto é o salário de professores universitários me sinto incapaz de opinar, como se soubesse que não posso falar muito porque sei dos privilégios perceptíveis de estar imersa no cheiro de formol, das canetas de quadro branco, e dos móveis velhos com placas de patrimônio. Também entendo um pouco de greves, consequentemente, e do quanto essa ferramente foi descronstruída entre os que as deflagravam e na opinião pública. Sei, sobretudo, da vantagem que me deu me equilibrar entre as estantes do gabinete (na verdade aquele cômodo horrível, o “dormitório de empregada”) da casa dos meus pais e pegar uma História da América Latina de Tulio Halperín Donghi antes de me deparar com esse texto na graduação. De aprender que as ausências de meus pais eram devido a congressos e enquanto escrevo isso, numa sala de embarque de aeroporto para ir a um congresso, lembro de que odiava muito assistir o avião levando meu pai ou minha mãe sumir no céu rumo a um, visto do terraço do antigo Salgado Filho, quando as pessoas ainda faziam isso. Ir abanar para a pessoa na pista como se de uma doca de onde sai um transatlântico.
Minha vida foi, até certo ponto, a de uma menina de classe média branca comum, que dividiu quarto com a irmã até os vinte um anos, que ia ao cinema com as amigas chorar vendo Titanic, e tinha aquelas rotinas de inglês, ginástica, o colégio e todas as angústias causadas por ele. Algumas coisas das vidas dos outros me pareciam alheias, por umas idiossincrasias do meu pai, e outras me tornavam esquisita, mas não mais do que a média das meninas esquisitas, essas que sentem que não se encaixam. Minha forma de lidar com isso foi estar sempre nos lugares e ao mesmo tempo não estar ali, não importava muito onde, e sentia eu que mudava internamente muito rápido. Sempre tive um diálogo interno muito intenso, às vezes em outra língua.
“Tu narra o que tu tá fazendo, como é isso?”, me perguntou meu companheiro esses dias.
“Sei lá, só tem uma voz ali, sempre.”
“Ah bom.”
Hoje é sexta e, na quarta-feira, eu estava em Jaguarão participando, em silêncio, de uma atividade do comitê de mobilização do sindicato, já que os professores da universidade onde trabalho decidiram não entrar na greve deflagrada no dia 15 de abril. Não foi uma votação apertada: 115 a 45. Tem muito professor que acha que perde mais do que ganha ao fazer uma greve, esse instrumento de negociação limite da classe trabalhadora. As vozes dos meus colegas, de técnicos e discentes ecoavam no hall semi-vazio do campus, onde baldes se aglomeram às vezes mais numerosos que pessoas, para catar as gotas que caem do teto mofado e rachado por uma infiltração. Depois gastei minha voz a ponto de chegar na terapia meio rouca, dando aula em duas horas corridas sobre Os olhos do império, da Mary Louise Pratt.
Não vou aqui repetir o que dizemos sempre que professores ameaçam entrar em greve: que ser professor também é trabalho, que trabalhamos até mesmo quando não deveríamos estar trabalhando, não só dando aulas mas pesquisando e gerindo a instituição. Meus pais poucas vezes viajam a prazer e minha mãe é notadamente a workaholic da família. Minhas lembranças das viagens de carro na infância incluem sempre algum texto encadernado com espiral no meio dos pés dela no banco da frente, junto com outras sacolas de badulaques e uma caneta solta sobre o painel do Fiat. Lembro dela sempre lendo para mim antes de dormir, pegar ela mesma no sono e começar a falar de trabalho no meio do enredo da Chapeuzinho Vermelho. “Não, mãe, não tem banco de dados na história”.
Por essas e outras, também não vou dizer que somos privilegiados e que na verdade lutamos por melhores condições de trabalho e por nossos alunos.
O buraco hoje em dia é mais embaixo. As ciências, principalmente as humanidades, foram o motor e o artífice do estabelecimento dos Estados-nacionais ao longo dos séculos XVIII e XIX. Se podemos imaginar um planeta coeso é porque criamos as instituições que validam os discursos que sustentam essa coesão: a universidade e os centros de pesquisa — financiados com dinheiro público não importa onde. Desde meados da última década, a primazia em produzir discursos sobre a realidade a partir da universidade começou a ruir, como outras instituições públicas. Está aí o cidadão privado Elon Musk que não me deixa mentir. Eu estava num avião em 2017 com um colega, voltando, veja bem, de um congresso, quando ele me disse “a história cumpriu sua função, aquela lá do século XIX de ser fiadora do Estado-nação, e agora talvez tenha que encontrar outra”.
A universidade é também, por óbvio, um lugar físico. Um lugar onde se vai trabalhar, encontrar colegas e alunos. Quando estudantes, um lugar onde nos chocamos uns contra os outros, contra textos que não entendemos e pessoas com passados singulares. Com quem nos vende um café para aguentar quatro horas de um velho sem didática alguma falando. Também onde, entre umas estantes de livros ou num sofá de centro acadêmico, beijamos alguém que talvez será importante para nós, uma cicatriz.
Um lugar onde nós professores temos uma singular relação com o tempo: nós envelhecemos, os alunos não.
A virtualização da universidade, o EAD, que supostamente vem resolver todos os problemas de financiamento dessa instituição e torná-la mais acessível, mais prática, abdica de tudo isso em prol de outras coisas. Eu nunca tive a experiência de, de fato, dar aula num curso à distância, mas quarta-feira eu tive a prova do valor que tem esse lugar físico que é a universidade. Tinha colocado o retrato de Félix de Azara num slide de aula, expliquei que foi pintado por Francisco de Goya. E os olhos de dois alunos se encheram de riso. Perguntei do que.
“A gente tava na biblioteca, eu mostrei um livro sobre o Goya e ele,” me disse o aluno, apontando outro, “disse ‘quem é Goyá’?”
Tem aí uns calhamaços de estudos sobre como a deterioração da saúde mental entre os jovens, não muito diferente da de Goya em meio às revoluções, está atrelado ao advento do smartphone, ao fato de que muitos jovens dispensam essa forma de socializar e produzir conhecimento: caminhar pelo corredor de uma biblioteca, rir da pronúncia errada do nome de pintor espanhol do século XVIII, como todos erramos o tempo todo. Goya se internou numa quinta perto de Madrid e pintou umas coisas que achamos geniais, mas que são muito duras de olhar, porque tristes, fruto do isolamento. Na mesma noite ri em voz alta lendo Los diarios de Emilio Renzi, de um momento em que ele admite que está estudando Hegel às pressas, que os professores em geral aprendem o que têm de ensinar uns dois dias antes. Así las cosas.
Muitos dizem que rejeitar inovações tecnológicas é envelhecer mal e sei muito bem que nada dura para sempre — a religião como explicação aglutinadora da realidade que o diga —, mas quando penso em greve, em salário, no teto caindo de onde trabalho e na desqualificação do serviço público como “casta”, penso que é isso estamos perdendo quando vemos o mundo se ancorar em cursos online e na consequentemente desumanização do ensino pelo mau emprego dessas ferramentas todas.
As dopaminas de rir com alguém e das trocas, dos afetos, e que nem tudo são as trevas que o mundo acadêmico — principalmente nas redes sociais — faz parecer que é.
Professora, você descreve uma situação constante entre os historiadores. Eu como aluno da pós-graduação, sinto isso e, veja, eu estava fora da área, mudei de ramo apos a graduação e voltei a pesquisa histórica, por um misto de amor, poder simbólico que ainda a profissão confere, mas um sentido de coletividade, uma possibilidade de construção deste sentido. Voltando, ligando com texto anterior que escreve - me desculpe, como o texto é aberto, admito a crítica as ideias - é um relativismo com a ciência histórica, digo, não digo que deve ser uma "revolucionária" pura e simplesmente, em uma perspectiva materialista histórico, como disse um militante online, a história está deslocada da classe trabalhadora, não vou a tanto, ainda que ele não minta, mas falo em perceber que a historiográfia, como processo coletivo humano, deve servir a esclarecer e "refazer" o passado, como muito liricamente escreveu Carola Saavedra em Manto na Noite. O que quero dizer, é fazer uma história da coletividade humana, não institucionalizada nos mitos e emblemas do passado (Ginzburg), mas em uma história do povo mesmo, da massa, que ela possa sentir o sentido coletivo. Isso a literatura e a música tem feito, fugindo daquela literatura insípiada de apartamento de POA e São Paulo, e indo para outros locais, outros espaços, com refinamento, mesmo que não sendo original. Assim como não digo apenas aos marginalizados, mas entender esse processo de territorialização dos corpos e seres, e seguir um paço adiante. Sem ser piegas, o famoso contrapelo da história de você sabe quem. No mais, adoro sua escrita. obrigado
Obs: a greve não é apenas sobre salário, e sim sobre condições estruturais, reestruturação das carreiras, e muito bem os estudantes estão entrando junto, compreendendo os ataques, e as mudanças ocorridas nos últimos governos, estamos em um ponto de inflexão, onde a universidade ou se torna popular de fato, ou volta a ser do bacharelado da classe média, elite.
Me identifiquei demais, especialmente com a parte do "aprender dois antes de lecionar", muito a minha cara nos meus já finados e cada dia mais distantes tempos de professor. que conciliava a universidade (privada) com outros trabalhos mais concretos de jornalista.
Na torcida/esperança por tempos melhores.