(Indígenas querandí, chamados pampa equivocadamente, pintados por Emeric Essex Vidal em Buenos Aires, 1818)
Há coisas que só acontecem porque estamos vivos. Não digo literalmente. Andei muito tempo por aí sem estar viva ou tentando estar menos viva, sem sentir as coisas, como se enrolada em papel filme, com a cara metida em livros. Por causa do papel filme e das capas duras, quando deixava uma brechinha de pele escapulir do plástico e me arranhava, parecia que ia morrer. Mesmo as palavras que eu escrevia e dizia em público eram sopesadas para não me denunciar muito, exceto quando queria me defender.
Bom, não mais.
Somos bichos que precisam de roupas e abrigo, então construímos e procuramos lugares para nos proteger, inclusive das formas alheias de perceber o mundo, atos e palavras que nos causam estranheza ou venham a nos ferir. Daí nosso medo e nosso luto num momento em que se encontram em desprestígio ou sob ataque aquelas instituições que deram a boa parte de nós alguma sensação de segurança ou, em alguns casos, um salário ao fim do mês. Esse momento em que muito do que julgávamos dado, lógico e racional parece ter deixado de fazer sentido para muita gente. O que pensar de Donald Trump, essa figura que vira o tabuleiro de premissas (e algumas ficções) compartilhadas mais básicas do que eram os Estados Unidos na segunda metade do século passado?
Sexta passada estive em um evento em Buenos Aires sobre isso que chamamos “divulgação científica” em história. E como alguém que ainda está trajando os dejetos de uma enchente, de ar cheio de fumaça e de uma eleição municipal que fez muita gente proferir que haja quem “prefira morrer afogado do que votar na esquerda”, tive que ouvir meus colegas argentinos falarem de método e de rigor historiográficos, essas guaridas profissionais. Admitiram, no entanto, que a história em particular (e eu diria as ciências em geral) deixaram de lado, na formação acadêmica dentro das universidades, o fato de que trabalhamos com algo que nos atravessa como lanças, às vezes nos revirando por dentro: a linguagem.
Como disse um filósofo francês de gola rolê, a maneira com que dizemos ou escrevemos as coisas é algo tão perigoso, que as ciências, para circunscrever hermeticamente as impurezas da ambiguidade e da dúvida, adotou formas de lidar com elas. Qualquer artigo acadêmico de qualquer área tem seus eufemismos e modos gentis de dizer que suas conclusões são aquilo que não esperamos que algo que nos deve segurança seja, isto é, inconclusas. No final, as formas com que escrevemos pressupõem um leitor que sentirá algo e até bulas de remédio nos fazem sentir coisas, que podem variar de leitor a leitor. Há, inclusive, os que as deixam de ler para não sentir.
Na minha humilde opinião, é isso o que está em questão quando discutimos o aparente derretimento de certos consensos nos últimos anos, alguns atados com clipes e chiclé, incluindo aqueles vindo de instituições que detém certa autoridade sobre determinados discursos. O que dizem a história, a ciência e os professores nas escolas, há algum tempo, deixou de ser confortável ou confiável a mais gente do que se supunha. É mais ou menos o efeito que teve a constatação, feita por alguns historiadores e filósofos na metade do século passado, de que a linguagem é o que modula o discurso histórico que se pretende científico e verdadeiro. Isso deixou muita gente, inclusive da minha convivência, algo insegura, de cabelo em pé, não pelo caráter inconcluso do conhecimento, mas sim por imperativos morais e o medo de uma suposta caixa de Pandora que se poderia abrir para revisionismos, negacionismos e outros animais que hoje nomeamos com alguma facilidade. No que chamaram de pós-verdade, foram aos fatos e à ciência, porque esses pelo menos são cômodos.
Sim, de certa forma estou dizendo que alguns cientistas se aferram a pressupostos epistemológicos da mesma forma que aquela hipotética tia ignorante acredita numa fake news de whatsapp porque ela referenda sua visão de mundo. Ninguém gosta de se sentir vulnerável.
Não à toa termos como “negacionismo”, hoje usados para apontar o dedo contra o prefeito que não soube manejar uma enchente, vêm das tão combalidas ciências humanas. De repente, temos uma palavra complicada, surgida no contexto espinhoso das discussões sobre o Holocausto, para jogar na cara de quem não fez a manutenção do sistema de contenção de cheias de uma cidade de um milhão e meio de habitantes, para ficar apenas nesse de tantos problemas que Porto Alegre (e tantas outras cidades) têm. O exercício cotidiano de pintar um bigodinho de Hitler, quando hoje há quem esteja repensando que papel teve esse homem, para nossa desgraça mental.
Palavras nos fazem sentir coisas, e eu tenho a sensação de que o campo político ao qual sinto que pertenço tem usado as erradas na maior parte das vezes, principalmente quando elas têm um histórico de exclusão por advirem do mundo ocidental. E que questionar os usos dessas palavras não significa negá-las, interditá-las.
No sábado, apresentei um trabalho do meu atual projeto de pesquisa, sobre literatura contemporânea latino-americana, numa mesa sobre arte e o genocídio ameríndio. Um grupo de expositores eram três membros da nação querandí, que falaram que isso que chamamos Buenos Aires pertence a eles e que estávamos inclusive num arremedo de terra onde ficava o que os espanhóis chamaram de Rio da Prata. Que estávamos num campo clandestino de detenção da última ditadura, mas que os primeiros desaparecidos da história argentina foram seus irmãos mortos pela expedição de Pedro de Mendoza para fundar a cidade. Algo muito forte de se dizer no prédio onde estávamos, concedido à organização H.I.J.O.S para servir como casa de militância, que fica no complexo da antiga Escuela Superior de Mecánica de la Armada, hoje cheia de cartazes com as fotos de quem dali sumiu.
Guillermo, o último deles a falar, disse ainda que nossas bocas estão cheias de palavras querandí. A minha, inclusive. “Bagual”, por exemplo, não significa, como apontam os dicionários, alguém grosso ou um cavalo difícil de domar. Era o nome de um cacique que pode não estar vivo, mas que os querandí garantem que sobrevive, sobretudo nos formatos de suas orelhas.
Palavras nos fazem sentir coisas, principalmente vivos.
Texto sensacional, como de costume.
Gosto muito de ler os seus textos. Primeiro, por ser historiadora. É raro, queria ler mais historiadoras assim. Segundo, porque sempre há um incômodo, não necessariamente ruim, mas que me atravessa e eu não saberia elaborar tão bem, mesmo você escrevendo (d)o Sul e eu lendo aqui no Sudeste.