(La Mer orageuse, Gustave Courbet, de 1870)
Estive com uma conexão estrangeira de internet então entrei naquela terra hoje varrida de qualquer resquício de meus afetos brasileiros, o Twitter. Me lembrou muito de como era quando comecei a usá-lo, deixando um blogspot acumular poeira, há uma quantidade de anos equivalente aos da vida de uma debutante de clube. O que vi foi um feed só de notícias com alguns comentários pontuais de pessoas físicas, em sua maior parte jornalistas ou políticos estrangeiros.
Quando comecei a usar o Twitter, eu seguia até o Dmitri Medvedev.
Em compensação, na aba do browser ao lado, as dinâmicas que às vezes me irritavam ali começavam a empilhar-se em uma sucessão quase abrumadora, muito mais do que as notícias, do que os alertas sucessivos em várias línguas de que umas centenas de pagers tinham explodido em cidades do Líbano. Isso tive que ver na televisão de um café de Rosario, enquanto almoçava rápido antes de começar a mesa em que ia apresentar um trabalho num congresso.
Me dei conta de que o que me irrita nas redes sociais por texto é a mesma coisa que me irrita ao tomar ônibus intermunicipais: uma pessoa falando muito alto no telefone ou com outro passageiro a respeito de assuntos pessoais que ninguém mais deveria ficar sabendo, inclusive se sobrepondo aos meus fones de ouvido. Nas redes sociais, isso fica pior porque há ainda a exposição do outro através de prints de mensagens postados de forma não consensual, o que sempre me enche de medo e vergonha. Não é algo que eu gostaria que acontecesse comigo: uma conversa ou relato a meu respeito compartilhado para escrutínio público, para os outros darem razão ao original poster, em detrimento do que quer que estivesse passando pela cabeça da outra pessoa.
Aí, enquanto corria no parque semana passada, me dei conta de que talvez seja disso que tanta gente fala quando discute os efeitos das redes sociais na saúde mental principalmente de adolescentes. A substituição do desabafo presencial, do compartilhamento discreto de experiências chatas ou dolorosas, pelo desabafo nas redes, seguido ou da validação dos likes e das ocasionais navalhadas de terceiros. A opinião de um desconhecido e não da mão no ombro, dos olhos e ouvidos alheios ali fisicamente de alguém de confiança. Creio que esse foi o principal efeito da pandemia e das recentes catástrofes climáticas sobre a socialização, que nos isolou uns dos outros, cancelou aulas e tornou inviável a conversa no pátio do colégio e do campus universitário, assim como o encarecimento de coisas muito simples como ir ao cinema e a extinção das lojas de discos e livrarias de shopping. Por mais doloroso que socializar também seja, no caso da internet, a interlocutora não é uma pessoa de trinta e cinco anos de São Paulo que nunca te viu na vida e agora está te chamando de imbecil impunemente. Minha experiência online nos algoritmos mais recentes do twitter, que entortaram o alcance de contas pequenas de modo que muitos incorrem no “kkkk hitou, amiga” é geralmente ser mal lida, a começar por minha foto de perfil e minha bio vaga.
Já me chamaram de adolescente, de “querida”, de “retardada”, de puta, e mais do que um punhado de homens veio me explicar erroneamente o que já sei, o que é muito pouco comparado, suponho, com o que sofrem perfis grandes, perfis que dependem de engajamento profissionalmente.
Perdeu-se o sentido da ironia — daí, suponho, os debates extensos a respeito de Capitu ter ou não traído Bentinho, o que passa por alto da economia interna do romance — e então qualquer comentário gera a pergunta “não entendi se é fã ou hater”, como se o mundo fosse simples assim, bolhas de identificação com uma coisa ou outra. Traiu ou não traiu.
Não demorou para acontecer comigo no BlueSky — não a hitada, mas as leituras desprovidas de qualquer entendimento de que o mundo não é feito de fãs ou haters, mas sim de um vocabulário mais amplo, de figuras de linguagem e de subjetividades variadas.
Há quem reclame também que no BlueSky não há dissenso político, que é mais propício a formação de bolhas ideológicas mais do que outras redes sociais. No entanto, isso para mim é coisa de gente para quem o dissenso político é apenas externo ao próprio campo — “trocar ideia com nazi”, como disseram — e que não está acostumada a se incomodar em seus espaços de enunciação. Gente para quem a rua é cômoda, porque não há olhares insistentes, ninguém questiona o que tu está fazendo ali e a que veio.
Para quem já teve de driblar aluno homem questionando ponto por ponto um programa de disciplina, as redes sociais parecem um parquinho.
Falo de gente como o rapaz, talvez bem intencionado, que veio me explicar que também existem homens conservadores de esquerda e que a real oposição no campo político é entre progressistas e conservadores. Passou totalmente por alto a esse sujeito que o conceito de progresso pouco tem a ver com políticas de gênero ou etnico-raciais. Muito pelo contrário, a ideia de progresso pressupõe que essas subjetividades sejam transformadas, moldadas por aquela de quem inventou esse conceito, na Europa do século XVIII. Assim como as categorias de esquerda e direita em suas origens. Os jacobinos não ficaram exatamente conhecidos por apreciarem o intelecto de mulheres. O emprego da palavra “progressista” para o campo identificado com pautas dessa ordem é tão recente que escapou à nomenclatura partidária no Brasil.
Houve também outro homem, no congresso em que estava, que se declarou incomodado com as teorias pós e decoloniais porque colocam em questão a (sic) ideia de ciência e de saber (sic), deixando-o em profunda crise existencial. Poderia se dizer que trata-se de alguém conservador, mas é também o que dizem muitos do campo da esquerda, que sustentam ideias muitas vezes naturalistas a respeito do próprio marxismo e que incorrem em besteiras a respeito dos “identitarismos”. Não dá para esquecer o incômodo que o estruturalismo causou em muita gente, em um tempo já distante, mas não tanto.
Toda mulher sabe que agressores sempre estão mais perto do que imaginamos e do quanto custa sentir-se à vontade num espaço. Infelizmente, nem uma rede só nossa — como se fosse um banheiro feminino — nos livraria de incômodos. Talvez muitos homens estejam descobrindo isso somente agora.