(Uma esquina em Almagro, Buenos Aires apontando a felicidade no passado e no futuro)
Dobrei uma esquina essa semana e agora tenho mais de quatro décadas de vida. Desde quinta passada, se digo que estou cansada, meu companheiro de andanças por aí me aponta esse detalhe com a sagacidade de quem já fez esse desvio, se deparou com o fato de que está na metade da vida. Minha irmã me olhou domingo enquanto eu mexia no cabelo e me perguntou de onde tinha saído uma mecha de cabelos brancos que fica aparente dependendo do ângulo. Não quis dizer que são de quase morrer entre 2020 e 2022, de andar pelos corredores vazios da universidade ano passado ainda atravessada pelo sentimento de que o proverbial tapete pudesse ser retirado por baixo dos meus pés.
De fato sinto que fiz uma atualização de software e me custa, como se eu fosse um cachorro ovelheiro já prestes a se aposentar, sair correndo por aí como antes. Um zagueiro que não alcança mais aquele ponta recém revelado da base rumo à linha de fundo. Estou cansada, mas estou bem, quase que inacreditavelmente bem. E isso, numa época em que a sofrência e a cara de cansada são alguns dos principais ativos nas redes sociais, é bastante peculiar. Dá até vergonha.
Dizem, em geral, que o Instagram é a rede onde as pessoas fingem que são felizes e suas vidas são perfeitas, mas eu tendo a ver as coisas por outro lado. Ela serve também para performar insatisfação, ansiedade e principalmente quando as coisas dão errado. É só ver as meninas que postam no TikTok, esse derivado como o Tofu é da soja, vídeos de si mesmas colocando DIU para mostrar o quanto dói. Como se tivéssemos que admitir tudo que é imperfeito num lugar onde a rigor as pessoas manifestam que estão fazendo de tudo para ser justamente o contrário. O Twitter, por outro lado, é a rede onde é proibido ser feliz, porque lá é o lugar que habitamos nós, os cínicos, os curtidos e amargos, que já vimos de tudo, mas onde também não se pode reclamar tanto, porque sempre há quem sofre mais ou quem advoga pela auto-estima e auto-aceitação constante. Quando alguém ousa falar de suas microfelicidades ou de suas tristezas mais comezinhas, outro vai lá e monta em cima, nesse mundo tão literal onde escrever não é compreendido como uma forma de representação. Sempre se aponta a falta, no caso, do interlocutor.
Não à toa, é também de onde saiu o termo “prefeito da coitadolândia”, agora bastante relevante porque estamos em ano de eleições municipais.
A mim me custa um pouco reconhecer que as coisas estão bem porque fui criada numa nau científica e os experimentos às vezes tendem a dar errado, os resultados são sempre inconclusos e se mostram rapidamente defasados. A internet cai, ocorre um erro na leitura do código de programação, a fonte que estamos querendo ler é ilegível ou obtusa. Leia-se: sempre falta algo e num ambiente onde se identificam rapidamente os eufemismos usados para desviar dessa incompletude, enrolar fica mais difícil. Por essas e outras, minha mãe sempre sabia quando não, eu não tinha escovado os dentes apesar de dizer que sim, para além daquele scanner raio-x de aeroporto a meu respeito que as mães (aquelas que performam a maternidade de uma certa forma) em geral detém.
“Não posso opinar sobre esse assunto porque não li ainda toda a bibliografia,” é o que digo às vezes. “Tenho que ler um livro inteiro para escrever um parágrafo”, brinco, quando estou metida em algo, em provar um ponto. Sempre estou em falta.
De forma mais ampla, já que somos entes atravessados pela política, como diz esse texto aqui, ser de esquerda e ser feliz é ainda mais difícil. O atrelamento dos ideais identificados com a esquerda à ciência e à história (e uma história que se quis científica) esbarra nas limitações da prática. Não sou nenhuma filósofa, mas dou aula de teoria da história, então sei um cadinho de onde vem certa expectativa de retidão de quem adere, em diferentes graus, aos preceitos do materialismo histórico. Se pensarmos, como Koselleck, que a história é uma narrativa secular de algo que antes tinha deus na jogada, se entende até mesmo o ascetismo e as penitências que se esperam dos socialistas de iPhone e de quem está atravessado, na internet, pelo discurso do que vulgarmente chamamos justiça social.
Como se todos tivéssemos que ser uns coitados para termos nossos ideais validados, esquecendo que os burgueses que Marx chamou de classe revolucionária foram quem colocaram as palavras busca pela felicidade em um manifesto político.
Prefiro pensar que a questão de fundo hoje em dia é, ao invés de choradeiras e ostentação, outra: que futuro pode a ciência e por extensão a esquerda que muito a defende (seu financiamento e com ele, a educação como uma forma de ascensão social) oferece? Sinto que vivo, por exemplo, numa cidade sem futuro, porque as pessoas por inércia vão votar no prefeito que está aí. E da mesma forma que vejo que simplesmente jogar dinheiro na universidade, construir prédios que dez anos depois estarão caindo aos pedaços e vazios — um modelo de educação superior que não corresponde à imaginação política de muitos —, vejo também que a esquerda está atrelada a modelos que talvez não funcionem mais, que apontar a falta virou seu único quinhão. A nós, professores, parece que não sobra outra coisa que tentar evitar a destruição do ensino público pelos Grupos Lehmann da vida como se estivéssemos todos em botes de salva-vidas. Nada muito diferente de evitar a transformação das cidades em um enorme canteiro de obras de um punhado de construtoras escusas.
Em Porto Alegre, caímos numa espécie de Soviet Visuals, um discurso que apenas rememora a cidade que o PT governou por dezesseis anos, inclusive oferecendo como candidatos as mesmas caras já vistas antes, um great again do outro espectro político. Num mundo em que dinheiro fácil é oferecido por todos os lados — jogo, apostas, criptos, investimentos em dólar para quem pode — para nos dar uma felicidade que podemos performar, como exatamente podemos estar bem? Se falta algo sempre para alguém, para nós mesmos, como deixar de habitar esse lugar cômodo de apenas enxergar aquilo que falta em nós e nos outros?
Não sei responder nada disso. Como sempre digo, ainda não li todos os livros. E no caso específico da esquerda, embora eu esteja em falta (e tudo bem), acho que nos cabe uma questão existencial um pouquinho mais complicada do que apenas vociferar.
Quando, por fim, seremos felizes sem voltar a algo ou depender ainda mais quando sabemos que nossa velhice não será como as dos que nos precederam?